Obra do filósofo averigua as razões da perda de prestígio da ciência psicanalítica
Publicado no caderno Cultura – O Estado de S. Paulo – Pág. D8
4 de fevereiro de 2001
Giovanna Bartucci
Em entrevista recente ao Estado, a respeito do lançamento de seu último livro, Entre cuidado e saber de si: sobre Foucault e a psicanálise, Joel Birman, psicanalista carioca e professor das Universidades Federal (UFRJ) e do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), deixa claro que acredita ser importante para a psicanálise retomar, a partir mesmo dos impasses que a própria psicanálise vive, o pensamento do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984).
Na realidade, os desenvolvimentos elaborados por Foucault estão presentes no percurso de Birman desde os idos de sua dissertação de mestrado. “Ao mesmo tempo que Foucault fazia uma crítica de uma leitura eminentemente epistemológica da psicologia, da psiquiatria, da psicanálise, propunha o que ele chamava de uma leitura genealógica e não epistemológica.” Para o autor, retomar Foucault hoje, a partir mesmo dos impasses que a própria psicanálise vive, interessa na medida em que a psicanálise ocupa um lugar central em todo o percurso do filósofo enquanto objeto de diálogo e de crítica, ocupando um lugar de interlocutor-crítico que possibilitou ao próprio Foucault pensar a presença de certos modelos éticos e políticos da subjetividade na modernidade.
Assim como Foucault, Birman também se considera um autor preocupado com a atualidade e, nessa medida, situa tal impasse em diferentes níveis. Há, diz Birman, uma crise da psicanálise em todo o mundo, no sentido de que um lugar cada vez menor é conferido à psicanálise na atualidade. E isto não só no sentido de retirar dela o prestígio simbólico que tinha dez ou vinte anos atrás, refletindo em uma perda de lugar no campo do conhecimento, das ciências humanas, mas também no que se refere a efeitos práticos, ou seja, em uma redução quanto a demanda de tratamento.
Como sair deste impasse? De acordo com Birman, é necessário tentar refletir sobre que modelo de pensamento a psicanálise construiu, uma vez que o mal-estar contemporâneo seria mal pensado com os enunciados psicanalíticos tal como são formulados. Assim é que, “retomar” Foucault, para Birman, é uma maneira de obrigar a psicanálise a sair de seu campo, de sua comunidade e entrar em um certo diálogo com a sua exterioridade, algo que a interpele a partir dos modelos de pensamento que a própria psicanálise utiliza. “É uma forma de tentar ir de encontro às formas de pensamento que estão congeladas nos conceitos psicanalíticos, na tentativa de ver se a psicanálise tem alguma forma de rigor para responder aos impasses do mal-estar contemporâneo”, diz Birman. Assim, seu último livro, lançado pela Relume-Dumará, retoma em outro registro aquilo que o autor desenvolve em livro anterior, Mal-estar na atualidade: A psicanálise e as novas formas de subjetivação, lançado pela Civilização Brasileira, só que – reitera Birman –, a partir dos desenvolvimentos de Foucault, um autor arguto que acompanhou a psicanálise durante trinta anos.
Birman entende que a psicanálise não é uma ciência, estando mais próxima de um discurso ético-estético-político, cujas críticas foucaultianas oferecem elementos para tentar desenvolver uma teoria psicanalítica próxima, sim, do modelo ético-estético-político. A metapsicologia psicanalítica estaria mais próxima de certos discursos filosóficos ou éticos sobre a subjetividade do que um discurso científico. “O que temos são uma série de proposições gerais, um certo modelo de funcionamento psíquico que não se adequa às normas de um discurso cientificista. Os conceitos metapsicológicos têm uma inconsistência científica, uma dimensão ficcional enorme, voltados para pensar o funcionamento psíquico, a singularidade das pessoas que se analisam”, diz Birman.
Em nenhum momento Foucault analisava o discurso psiquiátrico e psicanalítico a partir de uma teoria do conhecimento, teoria da ciência, mas, sim, da perspectiva de que isto revelava algum tipo de modelagem ética e política da subjetividade moderna. Qual modelagem ética e política da subjetividade moderna? De acordo com Birman, o “saber de si” é uma ética criada a partir da tradição do cristianismo que marcou o advento das ciências da modernidade e marcou profundamente o momento de construção do saber psicanalítico, marcou o modelo de conhecimento e de prática psicanalítica. Assim, podemos entender que “toda a modelagem da ética que vem do cristianismo, que vem da psicanálise, vem com uma interpelação de que, se o sujeito conhecer mais a si mesmo, ele vai se emancipar da sua neurose”.
Da perspectiva de Birman, há na psicanálise uma série de enunciados que poderiam nos levar a concebê-la como “cuidado de si” e não como “saber de si”. Assim, vistas pelas lentes do “cuidado de si”, as neuroses são formas, são estilos de existência, mais ou menos prazerosos, mas eles são muito mais modelos ético-estéticos do que formas de conhecimento. “Enquanto a psicanálise insistir em ser uma teoria da sexualidade, da neurose, uma teoria do saber de si, ela permanecerá neste beco sem saída em que se encontra”, afirma Birman. Assim, retomar hoje o diálogo de Foucault com a psicanálise implica uma maneira de retomar a possibilidade de ter uma leitura da psicanálise sem qualquer sombra da presença das categorias da filosofia do sujeito e da tradição do saber de si — seria nos apropriarmos dos enunciados que poderiam nos levar a conceber a psicanálise como “cuidado de si”.
Em outras palavras, a tese do cuidado de si é que a subjetividade é capaz de produzir saber sobre si própria. “Eu acho que uma das críticas que eu faria à psicanálise é que a psicanálise, como a medicina, como as demais ciências humanas, produziu um certo efeito de despossessão de saber, sobre o corpo, sobre a vida, sobre a morte, a dor…, ao invés de supor que existe um saber presente nas singularidades. Quando a psicanálise se concebe como um saber interpretativo, se centra apenas numa estratégia de deciframento sintomático, ela corre o risco de esvaziar aquilo que eu chamo de experiência psicanalítica propriamente dita, onde você dá um crédito a uma produtividade de saber que se produz nessa relação ética entre analista e analisando”, conclui Birman.
É importante observar que o autor pensa a psicanálise como uma modalidade, entre outras, de estilística da existência. Entende que o sujeito fundado na pulsão enquanto força é marcado por exigências éticas e estéticas; ou seja, a experiência psicanalítica produziria uma maneira singular de existir para o sujeito, forjada a partir dos traços encarnados de que ele disporia em estado virtual, como uma potencialidade.
Em seus trabalhos anteriores, Joel Birman já propunha que seria a partir dos ensaios freudianos metapsicológicos de 1915, em especial “As pulsões e destinos de pulsões”, que a pulsão passa a ocupar a posição estratégica de conceito fundamental da teoria psicanalítica, isto é, de conceito fundador dos demais conceitos metapsicológicos. Assim é que a interrogação sobre o registro da força da pulsão (Drang) e da representação (Vorstellung) tem constituído a cena teórica fundamental da interpretação metapsicológica do autor. Se o sujeito é constituído em decorrência da intensidade das forças pulsionais, de tal forma que a problemática que paulatinamente se inscreve no percurso freudiano é a de como o registro da qualidade se constituiu a partir do registro da quantidade, de tal forma que a inscrição da pulsão no universo do símbolo não seria nem imediata nem se realizaria necessariamente, “o modelo da economia permite você pensar a psicanálise mais próxima de um outro tipo de experiência ética que não tem nada a ver com a tradição do saber de si”, acrescenta.
Assim é que Birman está, com efeito, avançando a proposição de que o psiquismo e o sujeito do inconsciente seriam destinos de pulsões, desde que estas sejam concebidas no registro da força como exigência de trabalho. E, para tal proposição, a experiência psicanalítica só poderá mesmo “ser” o crédito a uma produção de saber que se estabelece na relação ética e fundamental entre analista e analisando.