Não basta desejar para ser, é necessário tornar-se

Joel Birman

Joel Birman

Publicado em Percurso. Revista de Psicanálise  Ano XI  nº22 – Págs. 135-138
Agosto de 1999

Giovanna Bartucci

 

É verdade, os diversos ensaios que compõem Cartografias do feminino podem mesmo ser lidos como um jogo de encaixes no qual as estratégias interpretativas ganham densidade e consistência. É com este convite que Joel Birman introduz o leitor àquele de seus livros que condensa, no fundamental, o seu caminho teórico pelo território da feminilidade em psicanálise. Nos diversos ensaios que compõem o livro, Birman aventura-se sempre pelo universo enigmático da feminilidade: faz uma leitura crítica do conceito de sexualidade, ressitua as experiências corpóreas do desnudamento e da exibição, percorre as estripulias desejantes de Carmen nos anos 80, destaca a significância de algumas modalidades atuais de violência feminina e, ao final, formula uma leitura crítica do masoquismo. No entanto, não nos enganemos, este jogo de encaixes pode ser facilmente ampliado e melhor compreendido se incluídos os dois últimos livros do autor, Por uma estilística da existência (1996) e Estilo e modernidade em psicanálise (1997), ambos também publicados pela Editora 34.

 

É importante observar que os ensaios dos três livros mencionados acima pertencem ao mesmo período de produção teórica do autor, a década de 90, e condensam uma linha de pesquisa que vem realizando desde 1993 nos diversos centros de pesquisa onde atua. Assim, embora neste nosso jogo de encaixes nos ocupemos dos ensaios que compõem Cartografias, caso o leitor deseje ampliar esta “geo-grafia”, tudo que terá a fazer será lançar mão dos livros anteriores.

 

Assim é que no primeiro ensaio de Cartografias, “Erotismo, desamparo e feminilidade: uma leitura psicanalítica sobre a sexualidade”, o autor irá destacar um conjunto de traços sobre a sexualidade  tais como prematuridade, incompletude, insuficiência, fendas corpóreas, polimorfismo, inexistência de objeto fixo da pulsão, entre outros , que a figura da feminilidade condensa. Torna-se necessário este trabalho prévio e fundamental, que é o de destrinchar meticulosamente o campo polissêmico que contém o conceito de sexual e é por ele contido no discurso psicanalítico.

 

A escuta freudiana do sexual contraria frontalmente as diferentes interpretações forjadas pela sexologia no Ocidente desde a segunda metade do século XIX. Ao circunscrever o conceito freudiano, Birman discrimina-o das sexologias, situando-o entre a ars erotica e a scientia sexualis. O caminho que o autor percorre permite que efetue a formulação que irá desdobrar ao longo deste livro: para além do fato de que a feminilidade realoca a diferença sexual e a diferença de gênero, num limiar no qual não é mais o falo que está em questão, para o autor “a feminilidade é a forma crucial de ser do sujeito, pois sem a ancoragem nas miragens da completude fálica e da onipotência narcísica, a fragilidade e a incompletude humanas são as formas primordiais de ser do sujeito” (p. 53). Em outras palavras, a feminilidade remete a algo que transcende a diferença de sexos, ultrapassando a oposição entre as figuras do homem e da mulher, uma vez que, na psicanálise, as figuras do homem e da mulher, do masculino e do feminino foram construídas de acordo com a lógica fálica. Para Birman, a feminilidade e o desamparo, conceito este desenvolvido por Freud nos anos 30, são as duas faces da mesma moeda. A feminilidade é a revelação própria do que existe de erógeno no desamparo, ou seja, a sua face positiva e criativa, o que este possibilita ao sujeito nos termos de sua reinvenção permanente.

 

A feminilidade é, então, um traço que se inscreve no registro da falta e do vazio que está no cerne da experiência do desejo. Assim é que, em “A máscara e o véu no desnudamento”, artigo que expressa os principais tópicos desenvolvidos em discussão realizada com estilistas de moda feminina, Birman irá diferenciar aquilo que se esboça no desejo não fetichizado em oposição ao fetiche. Se para Freud o fetiche funcionaria na experiência erótica masculina como uma recusa em reconhecer a castração da mulher, inventando, então, um pênis feminino imaginário mediante o fetiche, psicanalistas pós-freudianos acreditam que o fetiche é uma perversão sexual tanto masculina quanto feminina. Supõem que o fetiche tem como propósito encobrir a falta e o vazio que marcam qualquer sujeito na estrutura do seu desejo. Assim, para o autor, “o que se esboça no desejo não fetichizado é uma brincadeira em torno da falta, onde os parceiros jogam com a falta, mas já sabem de antemão que a falta existe” (p. 64). Aquilo que os parceiros realizam como simulacro da plenitude, que intensifica a volúpia do desejo e o ímpeto do desvelamento do corpo do outro, é algo de ordem lúdica. Por isso mesmo podem se permitir brincar com o encontro inevitável.

 

É nessa medida que Birman entende que enquanto na estrutura do véu existe no sujeito a demanda de explicitar algo que ao mesmo tempo se camufla, de forma a fundir a apresentação de alguma coisa com o seu próprio ocultamento, a máscara revela a imobilidade dos traços e o excesso de apresentação. Enquanto o véu indica a vitalidade indizível do desejo, a mobilidade nas linhas de força de sua estrutura, a máscara exibe a mortificação quase cadavérica da apresentação sem segredo.

 

Não é à toa que em seu terceiro ensaio, “Se eu te amo, cuide-se”, o qual toma a personagem Carmem para tratar da feminilidade, da mulher e do erotismo nos anos 80, o autor irá discriminar entre aquilo que denomina “histericização” e aquilo que intitula “histeria”. Para Birman, a histericização implica, para o sujeito, a colocação em movimento do desejo esterilizado e congelado que está no ser da histeria, que nesta última se encontra em estado de denegação e até mesmo na sua recusa. Na histericização, o erotismo é colocado na cena inaugural da existência e assumido na mise-en-scène ritual de seus atos, implicando a “dignificação do erotismo”, uma vez que este é considerado como “um bem precioso que funciona como uma bússola e uma fada madrinha que descortina o horizonte do sujeito. Assim, “enquanto a histericização indica o decantamento das inibições sexuais e a suspensão dos sintomas, de maneira a deixar insustentável a ordem fálica, para que o erotismo se torne possível na sua leveza arrebatadora, a histeria revela os impasses quase insuperáveis do sujeito na cena sexual, como defesa contra o erotismo” (p. 96).

 

Assim é que, digamos, a “Carmem de Birman” é uma personagem absolutamente encorpada e incorpada na sua alma, já que, como observa o autor, será tão somente a finitude da experiência mundana que poderá possibilitar a radicalidade presente na corporeidade de Carmem. Carmem é finita, finita e insuficiente. É isto que abre o seu ser para o outro e para o mundo. E como mulher fatal, a Carmem de Birman retoma positivamente o atributo memorial da sedução, ao decantá-lo de seus traços de “negatividade moral” e de malevolência que marcaram o ser da mulher através dos tempos.

 

A assunção positiva da sedução não implica para a mulher o ideal fálico, uma vez que a sedução deixou de ser um atributo para ser exibido na cena da conquista fácil, para ser exercida como uma marca insofismável da feminilidade. A sedução é, para Birman, a revelação plena do desejo feminino, a assunção pela mulher da sua feminilidade por meio da qual ela poderia dizer “eu quero este homem”. Em outras palavras, a Carmem de Birmam restaura o ser da mulher no registro do desejo, desejo este que pode ser reconhecido positivamente sem ser identificado com a “masculinidade”, a “falacidade” ou a “prostituição”. Como destaca o autor, é pela feminilização do desejo que o erotismo se torna possível, pois revela para homens e mulheres a incompletude que rasga os seus corpos, permeados pelo excesso indomável e diabólico.

 

É nesse sentido, então, que a leitura de Birman realoca a feminilidade como o originário do sexual, o eixo fundamental do erotismo. “Seria essa feminilidade de base que provocaria igualmente horror aos homens e mulheres, que se protegeriam do desamparo produzido pela feminilidade por meio da colagem nas insígnias fálicas e da instauração da ordem do falo… Assim, o discurso freudiano enuncia algo de inédito na história da sexualidade no Ocidente, pois, pela primeira vez, inscreve-se a feminilidade como sendo a origem e o fundamento do sexual, a sua condição de possibilidade” (p. 105).

 

Em “Nem tudo que brilha é ouro: sobre a sedução e a captura”, o autor se interessa por apreender, por entre as teorias e as práticas da sedução, as formas de ser do sujeito construídas na modernidade, de modo a inseri-las num horizonte histórico bem delineado. É assim que o autor empreende a desconstrução da noção de sedução instituída na modernidade, na qual as relações com os atributos da atividade, imobilidade e captura são preferenciais.

 

Birman entende que a sedução, estando na imanência do ser, inscrita na sua essência, seria a própria matéria-prima do encantamento do sujeito. Com a intenção oposta à de provocar a imobilidade e a captura do outro, a sedução se identificaria com a ideia de liberdade, pela mobilidade que promoveria no outro, retirando-o de sua estase mortífera para relançá-lo nas delícias da sensorialidade. Nessa leitura, o autor visa promover e dar lugar ao campo do desejo e da mobilidade pulsional. Sedução significa, aqui, brilho, fulgurância, uma luminosidade marcada pelo descentramento e pela dispersão, mobilidade que está no fundamento da ação da sedução sem captura. A luminosidade fulgurante, então, visa colocar o outro em movimento ao realizar uma ação de estimulação, uma corrente constituída nas diferenças de potencial entre luz e sombra, claro e escuro, ordenando-se como um movimento pregnante entre dois corpos. Como observa o autor, “se o brilho coloca o outro em movimento pela vitalização que imprime no seu ser, isso se dá na medida em que o brilho indica a presença do agente da sedução” (p. 127).

 

Assim, a presença é. Remete a algo da ordem da corporeidade, onde não existe absolutamente qualquer ocultamento de faltas e de falhas. Os limites do sujeito se evidenciam, então, na sua manifestação, sendo isto o fascínio na sua maneira falível de ser, o próprio sujeito evidenciando as fendas do seu ser e as suas falhas, que tornam impossível qualquer completude.

 

Mas será em “Nada que é humano me é estranho: por uma erótica do desamparo” que Birman irá tratar do que a mim parece ser o fundamental: as relações complexas entre o amor e a morte, uma vez que a morte está diretamente articulada com as artimanhas do desejo, dando corpo às formas de ser da paixão e do amor. Ao percorrer os desdobramentos que a personagem Carmem estabelece entre estes dois termos, amor e morte, o autor está, com efeito, realizando uma indagação crucial sobre o desejo, sobre a natureza de todo e qualquer desejo.

 

Assim é que, em um dos ensaios mais importantes deste livro, trabalhando dualismos tais como destruição e grandeza, vida e morte, crença e saber, familiar e não familiar, horror e medo, Birman indica como, no registro do eu, o sujeito é perpassado por uma posição persecutória de base, que informa o temor e a inquietude que o permeiam de maneira quase inaudível. Estaria aqui a indicação de que a subjetividade é ciente, absolutamente, de sua finitude e de seus limites. A oposição entre a crença na imortalidade e o saber sobre a mortalidade se evidenciaria para o sujeito como algo da ordem da recusa.

 

Birman evoca a fórmula que Octave Mannoni enunciou para dar conta da oposição acima: “eu sei, mas mesmo assim…”; ou seja, sei que sou mortal, mas mesmo assim acredito na minha imortalidade. Se a subjetividade funciona e se regula pela divisão entre a crença e o saber no que se refere à mortalidade, isto seria devido a uma forma de reação e de oposição originária do ser à experiência da morte.

 

Embora destacando que tanto Heidegger quanto Sartre desenvolveram suas filosofias articulando de diferentes maneiras as questões do “ser”, do “nada” e da “morte”, o autor se interessa por evidenciar, ao percorrer as temáticas da prematuridade, do vitalismo versus mortalismo, do corpo-sujeito, como o pensamento psicanalítico equacionou esta questão. Assim é que, “se como valor a morte é originária, e não derivada, na condição humana, em função mesmo dos pressupostos da prematuridade, da incompletude vital e da longa dependência do outro, isso nos revela que a marca fundamental do sujeito é o desamparo” (p. 162). E será preciso reconhecer, imediatamente, que esse desamparo humano não é superável.

 

Pois sim, Birman destaca que a oposição sublinhada por ele entre a crença do sujeito na sua imortalidade e o saber sobre a sua mortalidade ancora-se na construção do registro narcísico do eu, frente ao qual aquele procura recusar e silenciar seu desamparo originário. É nessa medida que o contato primário com a morte é constitutivo do sujeito. Com efeito, a morte é, aqui, entendida como uma possibilidade real e não apenas simbólica, sendo a construção do sujeito nos registros imaginário e simbólico a maneira de controlá-la como possibilidade efetiva. Sem essa passagem originária pelo território da morte não existiria absolutamente subjetividade. Nas palavras do autor, “não somos desamparados apenas por uma insuficiência genético-evolutiva, mas também por vocação, na medida em que o desamparo se materializa pelo rasgão originário que nos marca para sempre… O desamparo não é um momento temporal da história da subjetividade, mas uma marca estrutural da condição humana” (p. 165).

 

A Carmem de Birman, então, sabe tanto de seus limites quanto de sua mortalidade, sendo a sua principal característica não se horrorizar com os seus limites, uma vez que somente quem se sabe mortal e finito pode permitir-se a existência acidentada do desejo, sem ser tomado pelo temor e horror da morte. “Tudo isso caracteriza um estilo de ser marcado pelo que denomino feminilidade, marca fundamental que permeia Carmem, no qual as miragens narcísica e fálica do eu são colocadas permanentemente em questão” (p.168), observa o autor. Assim, o “estilo de ser” do sujeito se desdobra na feminilidade.

 

É importante observar que Birman pensa a psicanálise como uma modalidade, entre outras, de estilística da existência (1996). Entende que o sujeito, na psicanálise, fundado na pulsão enquanto força, é marcado por exigências éticas e estéticas; ou seja, a experiência psicanalítica produziria uma maneira singular de existir para o sujeito, forjada a partir dos traços encarnados de que ele disporia em estado virtual, como uma potencialidade. Mas, no entanto, é “a radicalidade da morte, como limite absoluto reconhecido pelo sujeito, que lhe impõe o apelo amoroso como um destino inevitável a ser prosseguido na existência” (p. 168). O que a Carmem de Birman afirma o tempo todo, por meio da busca sempre recomeçada da paixão, “é o quanto se torna incontornável a presença do outro na sua existência… (evidenciando-se), assim, de maneira insofismável a insuficiência de Carmem” (p. 168).

 

É isto que, neste momento, torna-se importante destacar: uma vez que a possibilidade de viver nos é dada pelo reconhecimento não da vida, mas da morte, se sobreviver não é suficiente, mas torna-se necessário saber da morte para viver, é nessa medida que a feminilidade realoca a diferença sexual e a diferença de gênero num outro limiar, no qual não é mais o falo que está em questão. São as oposições referentes a lógica fálica, ter/não ter e ser/não ser o falo, que a feminilidade coloca em questão para ambos os sexos, dando corpo, assim, à radicalidade do desejo.

 

Em “Castrados de todo mundo, uni-vos! Sobre o erotismo e a violência sexual na atualidade”, ao tomar o acontecimento da decepação por parte da esposa do pênis do marido, acontecimento que se deu nos EUA, em torno de 1996, Birman trata de discriminar entre o gesto e a passagem ao ato para, finalmente, indicar que foi por meio deste impensado, oriundo do sujeito fora de si e se opondo à lógica narcísica do eu, que outros horizontes de pensamento se entreabriram para o sujeito.

 

Qualquer associação, no entanto, entre desejo e dor, e discriminações entre masoquismos erógeno, moral e feminino não poderiam ser explicitadas em “Estilo de ser, maneira de padecer e de construir: sobre a histeria, a feminilidade e o masoquismo” sem que tomássemos o conceito de pulsão como fundamental. Em seus ensaios anteriores (1996/1997) a este, o autor já propunha que seria a partir dos ensaios freudianos metapsicológicos de 1915, em especial “As pulsões e destinos de pulsões”, que a pulsão passa a ocupar a posição estratégica de conceito fundamental da teoria psicanalítica, isto é, de conceito fundador dos demais conceitos metapsicológicos. Assim é que a interrogação sobre o registro da força da pulsão (Drang) e da representação (Vorstellung) tem constituído a cena teórica fundamental da interpretação metapsicológica do autor. Se o sujeito é constituído em decorrência da intensidade das forças pulsionais, de tal forma que a problemática que paulatinamente se inscreve no percurso freudiano é a de como o registro da qualidade se constituiu a partir do registro da quantidade, de tal forma que a inscrição da pulsão no universo do símbolo não seria nem imediata nem se realizaria necessariamente, desenha-se, para Birman, uma figura de sujeito cujo traço básico é o desamparo. Birman dirá, então, que frente a este impacto pulsional, o sujeito se protegeria do real da angústia e do desamparo pela colagem a um outro, emprestando seu corpo de maneira “humilhante” para o gozo deste.

 

Assim é que Birman está, com efeito, avançando a proposição de que o psiquismo e o sujeito do inconsciente seriam destinos de pulsões, desde que estas sejam concebidas no registro da força como exigência de trabalho. “O sujeito do inconsciente seria um dos destinos das pulsões, destino privilegiado, ao lado do ‘retorno sobre o próprio corpo’, da ‘transformação da atividade em passividade’ e da ‘sublimação’. É neste contexto, então, que o sujeito do inconsciente se constitui no psiquismo como um desdobramento das vicissitudes das pulsões no campo do outro” (1997, p. 10). Assim, “o sujeito como destino é sempre o de um projeto inacabado, se produzindo de maneira interminável, se apresentando sempre como uma finitude face aos seus impasses, confrontado ao que lhe falta e ao que não é” (1997, p. 37).

 

Uma vez realocada a feminilidade como o originário do sexual, como o eixo fundamental do erotismo, seria por meio da feminilização do desejo que o erotismo se tornaria possível. Finalmente, é mesmo da natureza de todo e qualquer desejo que se trata; e, fundamentalmente, das relações vicerais entre o amor e a morte…