Publicado na Revista da Folha – Folha de S.Paulo – Ano ** – nº *** – Págs. **-**
21 de agosto de 2003
Por Roberto de Oliveira – Jornalista
Basta lembrar da maçã que corrompeu Adão & Eva e comparar às malas de dinheiro que estão turvando os céus de Brasília para ter certeza de que a corrupção é coisa velha, muito velha – bem mais que o Brasil, por certo. Mas, para os brasileiros, reina a sensação de que ela é bem maior e mais devastadora por aqui, onde costuma circular com particular desenvoltura e volta e meia reaparece em grande estilo, fazendo tremer a República.
Apesar dessa convivência estreita, a onda atual de denúncias tem uma agravante em relação à grande crise anterior, que terminou no impeachment do presidente Fernando Collor – para a maioria, é como se ela tivesse queimado a última ficha do jogo.
“O ‘apagão político’ do governo Lula fecha um ciclo. Com ele se completa a seqüência natural de testes a que foram submetidas pelo eleitorado brasileiro as três grandes forças de oposição gestadas durante o regime militar: o PMDB de José Sarney, o PSDB de FHC e o PT de Lula”, diz o economista Eduardo Giannetti.
Até por isso, dizem analistas, políticos, estudiosos e palpiteiros em geral, o efeito na psicologia social tende a ser mais carregado de pessimismo do que em 1992. “O que move o sujeito são os ideais, os sonhos; você vai atrás de algo em que acredita. Quando um ideal cai por terra, além de todos os problemas cotidianos, sua queda agudiza o medo e provoca um desânimo tremendo”, observa a psicanalista Giovanna Bartucci, 43, do departamento de psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. No caso do PT – para muitos, a última cartada do espectro político –, “a fé não podia falhar; e a fé falhou”, diz ela.
Diante do naufrágio, a pergunta que alimenta todas as conversas, de partidários a adversários, é: o que virá pela frente agora?
Para sondar o ânimo coletivo, a Revista perguntou a dezenas de pessoas que medo elas alimentavam em relação ao desfecho da crise e selecionou 28 respostas que funcionam como síntese do que foi dito. Impunidade, descrença, desesperança, risco à democracia ou às instituições foram os medos mais citados. Apesar de todos eles, há bem mais otimistas (na medida do possível) do que se poderia supor.
NEOPOPULISMO
“Os riscos que a crise encerra podem ser enfeixados numa frase: a possibilidade de avanço do neopopulismo, aí se entrelaçando a esfera política e a econômica.Do ponto de vista político, são preocupantes não só o conteúdo e a arregimentação para verdadeiros comícios que o presidente Lula vem realizando. Isso é o imediato. Em prazo mais longo, um vazio político provocado por muitas frustrações viria a ser campo fértil para a emergência de uma liderança salvacionista.
Do ponto de vista econômico, a curto prazo, eventuais gastos governamentais irresponsáveis surgem como tentação para tentar recuperar o prestígio do governo. No médio prazo, as vozes em favor da ‘ruptura do modelo’, com conseqüências muito negativas para as classes mais pobres pela via da inflação, podem alcançar um eco que não tiveram, em anos seguidos de estabilidade. Mas, na verdade, a crise abre mais esperanças do que temores.”
Boris Fausto, 74, historiador e cientista político
CONTAMINAÇÃO
“Meu temor é que o escândalo acabe atingindo todos os políticos e aí não dá para separar quem é ou não corrupto. As pessoas estão atônitas diante de tanta denúncia.”
Paulo Salgado, 39, apresentador de merchandising
GOLPISMO PLEBISCITÁRIO
“A eleição de Lula foi acompanhada de esperanças e temores exagerados. É natural que o insucesso de sua administração provoque também uma decepção desmedida. Afinal, até mesmo opositores de sua agremiação pareciam crer que ela era moral ou qualitativamente diferente, que estava acima ou fora de meio milênio de história nacional. Daí o desencanto não se confinar apenas à esquerda.
Mas a crise do PT ou do governo Lula não é a do país. Crises políticas como esta são corriqueiras na trajetória de qualquer nação e é por isso que existe a democracia, pois se trata da maneira mais eficaz de lidar com situações assim.
O medo que existe por aí, se é de fato tão profundo e generalizado, não se limita ao Brasil e talvez se deva antes à percepção de que toda a ordem internacional está passando por uma zona de turbulência. No nosso caso, o que há de mais preocupante são as propostas golpistas de intelectuais e militantes que, falando agora em democracia plebiscitária (e, quem sabe, amanhã, em tribunais populares), gostariam de mudar as regras no meio do jogo. Ao que tudo indica, porém, o bom senso cívico e democrático da população prevalecerá sobre a histeria passageira e sobre aqueles que pretendam se beneficiar dela.”
Nelson Ascher, 47, colunista da Folha
DEMOCRACIA EM RISCO
“Tenho medo que ocorra um golpe militar e o país sofra um terrível retrocesso histórico.”
Roberta Prado, 27, estudante
“Me dá arrepios só de pensar numa ressurgência do poderio militar, que todo esse cenário abra oportunidade para um golpe de Estado. A América Latina ainda é uma região muito frágil aos escândalos políticos.”
Helena Fernandes, 41, coordenadora técnica
“Morro de medo de ocorrer uma grande guinada e os militares assumirem o poder e todo direito democrático recém-conquistado ir por água abaixo.”
Ricardo Augusto Martins, 27, instrutor de ioga
“Medo de quebra da institucionalidade democrática. Lutamos durante 21 anos para derrubar a ditadura e a redemocratizar o país. A preservação da institucionalidade democrática é fundamental neste momento, e a reforma política é imprescindível para esse aprimoramento. Que a gente também possa conquistar a democracia econômica.”
Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, 60, frade dominicano, escritor e assessor de movimentos sociais
DESQUALIFICAÇÃO DA POLÍTICA
“Temo a desqualificação da política, que pode se manifestar sob formas distintas e não necessariamente excludentes. O PT representou uma construção histórica fundamental, um elemento básico na arquitetura da democracia brasileira. Desempenhando o papel de partido dos ‘de baixo’ e participando do jogo político, retirou o oxigênio das alternativas de ruptura violenta pela esquerda. As águas da contestação foram drenadas para um leito institucional.
A ruína moral e política do PT, provocada principalmente pela sua camarilha dirigente, ou seja, pela camarilha de Lula e José Dirceu, tende a fragmentar os grupos de esquerda, abrindo caminhos para as aventuras das seitas radicais. Lula, no interior do PT, figurava como líder de um partido de massas ancorado nas instituições democráticas.
A ruína do PT pode conferir novos significados a essa liderança. Lula emite sinais de que pode se comportar como um caudilho populista, ou seja, um líder associado a frações conservadoras das elites que dialoga diretamente com as massas de despossuídos. Isso, ressalte-se, nada tem a ver com o ‘cenário chavista’ invocado por comentaristas que parecem não ter a mais vaga noção da história e da sociedade venezuelanas.
A crise atual é, também, uma crise dos movimentos sociais. As direções da CUT, da UNE e do MST, assim como uma série de ONGs, renunciaram à autonomia política e estabeleceram laços de dependência com o governo de Lula. O seu discurso de defesa incondicional do presidente e alerta contra um imaginário ‘complô das elites’ é uma farsa destinada a iludir as suas bases. Essas direções ameaçam condenar suas entidades e movimentos à irrelevância ou, pior, a se transformarem em instrumentos de mera manipulação política. O espaço que elas deixam vazio pode ser preenchido por aventureiros de diferentes matizes.”
Demétrio Magnoli, 46, doutor em geografia humana, colunista da Folha
OPORTUNISTAS
“Estou apavorado com a possibilidade de que o escândalo abra espaço para os oportunistas e populistas de plantão, gente como o ex-governador Garotinho, que, aliás, já está em campanha. Que descrença seria para o nosso país lá fora.”
Tiago Alves, 26, professor de educação física
“Tenho medo de que políticos demagógicos ganhem mais espaço nesse palco que é a CPI.”
Cláudia Ajaj, 29, advogada
CINISMO
“Meu temor é que nosso povo deixe de acreditar na possibilidade de o Brasil sair, um dia, da humilhante posição de segunda pior distribuição de renda do mundo. Que passemos a pensar que todos os políticos são iguais, que o ser humano não presta, que não há solução.”
Paulo Betti, 52, ator e diretor
“Meu medo é que a lama toda atinja o Lula e o José Alencar e abra espaço para o Severino Cavalcanti. Temo que ele adote medidas ditatoriais como censurar a imprensa e afugentar os investidores estrangeiros, além, claro, de institucionalizar o nepotismo.”
Camila Mofsovich, 14, estudante
RADICALISMO
“Meu temor vem das turbulências já anunciadas pelos radicalismos. As seitas não dormem e sempre estão à busca de situações conflituosas para justificar os seus sonhos, que se tornam pesadelos coletivos. A crise política não é apenas do Poder Executivo, mas do Estado brasileiro.
Sinto medo de um prolongamento artificial da agonia vivida pela base parlamentar do governo, de modo a produzir um solo fértil para ódios e atentados aos direitos dos que partilham nosso país. Atentados aos direitos terminam em supressões de vidas biológicas e anímicas, neste ou naquele setor ideológico ou partidário. Após as mortes de Celso Daniel e de Toninho do PT de Campinas, temo que a violência se espraie ao redor de um possível impeachment e torne impossível qualquer acordo político nacional.”
Roberto Romano, 59, filósofo, professor titular de ética e filosofia política na Unicamp
CAPITALISMO
“As ideologias, em quase toda a parte do mundo, estão sendo tragadas pelo avanço do consumo capitalista. Dá a impressão de que quanto maior a crise melhor ele se reabastece. O Brasil não foge dessa regra: apesar de toda a terrível situação, ele, o capitalismo, navega, parece, de modo até arrogante.”
Antunes Filho, 75, diretor de teatro
SEM MEDO
“Medo de quê? Pior do que está não é possível ficar. Está tudo vindo à tona, o país está parado, mas a economia segue forte. Nem penso em impeachment. Vai haver um limpa, o Lula, coitado, vai ficar lá até o fim, com todo mundo o desrespeitando. Pouco a pouco, a gente vai reconstruindo tudo. O tempo vai curar todos esse males.”
Tônia Carrero, 82, atriz
“Não há razão para ter medo. Vejo com esperança o futuro. Eu acredito no Brasil. Estamos passando por um processo difícil, doloroso. Riscos existem, mas eu acredito que tudo isso será superado e vamos sair disso em breve.”
Boris Schnaiderman, 88, tradutor, professor e escritor
“Não estou com medo. Acho que tudo isso vai acabar bem. A tendência é o eleitorado optar por um voto pragmático. Estamos aprendendo a votar. O próximo presidente será fruto desse amadurecimento. Não haverá cenário propício para aventureiros e salvadores da pátria. Se olharmos para o tempo histórico, depois de um longo período de ditadura, toda essa situação é benéfica, porque estamos evoluindo com ela. Nosso trunfo é essa monitoração eficiente jamais vista que ainda irá fazer a gente se orgulhar muito.”
Lobão, 48, cantor e compositor
FIM DE CICLO
“Primeiro, a esperança venceu o medo; depois o desapontamento venceu a esperança; e, por fim, o desespero ameaça vencer o desapontamento. O espetáculo nada tem de novo. ‘Tenho visto fatos extraordinários’, relata Montaigne (escritor e pensador francês, 1533-1592) sobre a política do seu tempo, ‘que demonstram com que facilidade incompreensível os povos se deixam convencer e guiar pelos seus chefes quando se trata de crenças e esperanças; apesar das desilusões repetidas, são levados pela fantasia e o sonho’. O desafio é tirar das ilusões perdidas não o desespero, mas o ânimo de novos avanços.
Com o enterro das ilusões políticas do petismo, caem por terra as últimas fantasias de que mudar o Brasil dependia apenas de ‘vontade política’, ou seja, do voluntarismo dos justos e bons. O processo é doloroso, mas abre a oportunidade para um necessário amadurecimento no caminho da democracia. A crise não me assusta. Se o que vem sendo apurado existe, prefiro saber a continuar na escuridão. Que a verdade saia do poço, sem indagar quem se acha à borda. O que me assusta é o risco de que tudo termine em nada, ou seja, num grotesco acochambramento de cúmplices e ‘acordões’. O pior que pode nos acontecer é o desencanto com os políticos da hora virar descrédito com a política como forma de atuação. É o desengano das ilusões perdidas se tornar descrença na democracia como forma de governo. O Brasil tem tudo para sair fortalecido dessa crise. Só o veneno da indiferença e do desânimo podem nos derrotar.”
Eduardo Giannetti da Fonseca, 48, economista e professor das Faculdades Ibmec de São Paulo
MATURIDADE
“A médio e longo prazos, não tenho grandes temores. Sobre certos aspectos, o que está acontecendo é a queda do muro de Berlim. Eu explico: caiu com algum atraso o mito de que a classe operária teria papel messiânico, e os trabalhadores passaram a ser apenas mais uma força dos que procuram a transformação social. Não é o fim da história, mas apenas um processo que deve marcar um novo nível de maturidade política. A curto prazo, no entanto, os arranjos que terão que ser feitos podem trazer alguma inquietação, mas acredito que o Brasil sairá dessa de uma forma serena, sem contemplação com os culpados, mas respeitando o texto básico da Constituição.”
Fernando Gabeira, 64, deputado federal (PV-RJ)
IMPUNIDADE
“Tenho pânico de pensar que tudo isso não adiante nada, que o país continue infestado por corruptos e volte a ter os mesmos problemas daqui a dois anos. Meu medo é a falta de impunidade, que a corrupção sai mais uma vez vitoriosa e que não haja uma exemplar punição.”
Temistocles Cintra Alves, 52, médico
“Meu receio é que os culpados não sejam punidos, que Lula possa estar envolvido e não pague por isso. Acho que fica difícil quando a suspeita de crime é generalizada.”
Stephanie Galassi, 18, estudante
“Minha maior preocupação é que haja um gigantesco conluio entre a elite política e econômica desse país que impeça o processo de apuração de todo esse esquema de corrupção. Tristeza em relação a esse episódio todos nós temos, mas estou com os milhões de mães brasileiras que ensinam seus filhos que é proibido roubar.”
Heloisa Helena, 43, senadora (PSOL-AL)
DIVISÃO SOCIAL
“Temo duas situações. A primeira é um impasse institucional no sentido de se avolumarem dados que possam implicar o presidente Lula e assim propiciar juridicamente um processo de impeachment. Tal tentativa dividiria a sociedade. A Coordenação dos Movimentos Sociais liderada pelo MST, CUT e UNE que envolve mais de 40 entidades populares de todo Brasil defenderiam Lula argumentando que esse mandato não é patrimônio pessoal de Lula mas de todo o movimento social dos destituídos e marginalizados da história brasileira; estes não reconheceriam autoridade moral e política de um Congresso notoriamente perpassado de corrupção para julgar o presidente de corrupção. Estes fariam manifestações multitudinárias pelo Brasil afora. Outros grupos contra o PT e o presidente tendo por trás partidos oposicionistas também sairiam à rua com eventuais enfrentamentos de ambos os grupos.
A segunda situação seria, com o afastamento eventual do presidente Lula, a volta dos tradicionais ‘donos do poder’ que reintroduziriam com renovado entusiasmo o neoliberalismo com as privatizações, aproximação da política externa norte-americana, manutenção de uma democracia de baixa intensidade que favoreceria seus interesses. Assim teríamos desperdiçado uma experiência histórica inovadora, de ter no governo um representante daqueles que nunca chegaram ao poder central.
Caso a sociedade brasileira supere esta prova haverá uma profunda reforma política que dará outro rosto ao Congresso e aos procedimentos de escolha dos representantes do povo.”
Leonardo Boff, 66, teólogo e escritor
DESCRENÇA
“Tenho medo de que o país acabe criando calos na alma, anestesiando-se a ponto de acreditar que o seu destino possa ser este mesmo, o lamaçal perpétuo, que, para nós, nenhum banho seja eficaz -nem o de sangue, nem o de creolina.”
Humberto Werneck, 60, escritor e jornalista
“Tenho medo que a crise descambe a ponto de levar os brasileiros a acharem que a democracia não serve para nada e que, portanto, pouco importa quem nos governa. Medo de que nem minhas netas possam ver nossos maiores problemas resolvidos. Medo, enfim, que nessa onda de salve-se quem puder ninguém possa se salvar.”
Paulo Markun, 52, jornalista e apresentador
“Medo de que esse sonho de criar um Brasil solidário dê lugar ao individualismo e à desconfiança em relação à vida pública e tudo que ela representa de bem comum. Se isso de fato acontecer, outros virão para nos substituir e resgatar a esperança perdida: este país será sempre maior do que suas crises.”
Aloizio Mercadante (PT-SP), 51, líder do governo no Senado
CAIXA DOIS
“O maior problema é que o Brasil está sentado num caixa dois, do comércio à política. O meu grande medo é que se confirme que aqui é o país do jeitinho.”
Eduardo Iaki, 28, comerciante
CAOS
“Minha preocupação é que o escândalo derrube a economia, o desemprego aumente, a violência cresça ainda mais e um bando de incompetentes chegue ao poder no ano que vem.”
Marcella Kitasaua Vilar, 17, estudante