Publicado no caderno Cultura – O Estado de S. Paulo – p. D4
07 de março de 2010
Giovanna Bartucci
“Toda a minha vida acreditei nas modificações que podia fazer e algumas vezes fiz, num temperamento do qual muitas vezes não gostava, mas agora parece-me que o tempo só trouxe alterações e mutações, ao invés de reformas verdadeiras; e por isso resta-me tanto do passado, que não tenho o direito de pensar que é muito diferente do presente”, escreveu, em 1973, Lillian Hellman (1905-1984), uma das mais importantes dramaturgas atuante entre os anos 1930 e 1950 nos EUA. E talvez por isso mesmo tenha apresentado os três volumes de sua autobiografia – apesar de muito diferentes entre si – como pentimentos, ou seja, vestígios de composições anteriores, ou de alterações em quadros, tornadas visíveis com a passagem do tempo.
Relançados pela José Olympio, em 2010, o primeiro deles, Uma Mulher Inacabada, de 1969, é o retrato da menina que se transformou em uma mulher cuja natureza alternava “entre uma certa vagueza e exigências rígidas”. Com efeito, nascida em New Orleans, Lillian estava permanentemente dividida entre o apartamento nova-iorquino, pertencente à família materna da alta classe média originária do Alabama, sul dos Estados Unidos, e a família paterna, que se estabeleceu em New Orleans na imigração alemã de 1845-1848. Seu pai, entretanto, nunca seria considerado “um marido à altura de mocinha tão rica e bonita”, como refletiria a autora.
É claro que isso não seria significativo se a pequena Lillian não se visse, a cada seis meses, “transferida de uma escola de Nova Iorque para uma escola de New Orleans, fosse qual fosse a etapa do ano letivo e qualidade do ensino numa e na outra”. É possível, escreveria mais tarde, que por meio dessa “necessidade constante de ajustar-me a dois mundos muito diferentes (…), descobrira muito cedo que (…) era capaz de pular um obstáculo com elegância e facilidade, e, em seguida, me esborrachar ao chão no esforço de correr para saltar o seguinte”.
Uma Mulher Inacabada, contemplado com o National Book Award, narra, então, os caminhos percorridos pela menina criada no sul do país pela babá negra Sophronia até os voos realizados pela dramaturga e roterista de cinema. Diversas vezes premiada, duas vezes indicada para o Oscar de melhor roteiro – em 1942, com As Pequenas Raposas (direção de William Wyler, EUA, 1941, 115’), adaptação de sua peça homônima, de 1939, e, em 1944, por A Estrela do Norte (direção de Lewis Milestone, EUA, 1943, 108’) –, Lilian recebeu também a medalha de ouro, na categoria de dramaturgia, do Instituto Nacional de Arte e Letras, em 1964.
O primeiro volume das memórias da autora retrata ainda a relação da dramaturga com Dashiell Hammett (1894-1961), escritor responsável pela renovação do gênero policial noir, com quem viveu por 30 anos pelo puro “prazer que tínhamos um no outro”, conforme registrou em 1973. O livro também nos aproxima, com bom humor, da ficcionista Dorothy Parker (1893-1967), dos romancistas F. Scott Fitzgerald (1896-1940) e Ernest Hemingway (1899-1961), do diretor de cinema William Wyller (1902-1981), do produtor Samuel Goldwyn (1879-1974), para quem trabalhou na Metro-Goldwyn-Mayer, e do cineasta russo Sergei Eisenstein (1898-1948).
Curiosamente, os cinco meses que Lilian passou na Rússia, de outubro de 1944 a fevereiro de 1945, com a intenção de escrever um filme sobre o país, o seu retorno para lá, 22 anos depois, e sua viagem à Espanha de Franco, em 1937, são temas sobre os quais Hellman se detém tendo sempre como referência os diários que escreveu à época – o que lhe permite pensar a sua história pessoal em termos geracionais.
Suas memórias do macarthismo, nos EUA dos anos 1950, seriam relatadas em profundidade, no entanto, no volume Caça às Bruxas, de 1976. Em 1º de junho de 1952, Lillian Hellman, que fazia a narração de Regina (1949), ópera de Marc Blitzstein (1905-1964) baseada em As Pequenas Raposas, foi ovacionada pela platéia. Intimada a depor diante do Comitê de Atividades Antiamericanas do Senado, em 1952, sua resposta representou uma rajada de ar fresco em meio ao clima de terror instaurado sob a batuda do senador Joseph McCarthy (1908-1957): “Não posso e não desejo amoldar minha consciência à moda do ano (a delação), embora tenha chegado (…) à conclusão de que não tenho pendor político e não me sentiria bem militando num grupo político”.
O fato é que a sua obra foi a sua atuação política. Ainda que tendo sido contemporânea de dramaturgos como Eugene O’Neill (1888-1953), Tennessee Williams (1911-1983) e Arthur Miller (1915-2005), e se mantido próxima dos preceitos clássicos do drama, a sua produção tratou de temas como o fascismo durante a Segunda Guerra e a omissão da classe média norte-americana em face da sua expansão; de questões sindicais e de ética política num contexto de lutas trabalhistas e de fura-graves; e também da erosão das relações familiares em decorrência da cobiça material (como se vê em As Pequenas Raposas).
É claro, vale lembrar que Pentimento, de 1973, contém um capítulo sobre a relação da escritora com a dramaturgia, ainda que não haja “como explicar o instinto para o teatro, embora os que o têm reconheçam-no uns nos outros, como um laço que os une”, escreveu ela.
Contudo, Pentimento se constitui, afinal, em um livro de retratos de alguns daqueles que lhe marcaram a existência. Como Bethe, a prima judia que se converteu ao catolicismo por amor a um mafioso, e cuja intensidade da experiência serviu de parâmetro para a relação amorosa entre Lillian e Dashiell Hammett. Ou Júlia, a amiga de infância que, enquanto estudava medicina em Vienna, se analizava e estudava com Freud, “estava fazendo alguma coisa muito perigosa que se chamava trabalho antifascista”, e cujo relato foi posteriormente transformado no filme Júlia (direção de Fred Zinnemann, EUA, 1977, 108’), com Jane Fonda e Vanessa Redgrave. Em outras palavras, um livro que, delicado, divertido, às vezes irônico, termina por – ao retratar outras pessoas – pintar um quadro, o da própria Lillian Hellman.