Ver e ser visto – ou, “representação” e “apresentação” – nas imagens da noite de Brassaï e Yoshiyuki

Brassai, autoretrato, 1952

Brassai, autoretrato, 1952

Publicado nos Anais do Seminário Pesquisa na ABCA: Balanço e Perspectivas – 2013 – Págs. 163-165¹
ABCA-SP – Associação Brasileira de Críticos de Arte | USP – São Paulo – SP

Giovanna Bartucci

Se à pós-modernidade corresponde um questionamento da moderna epistemologia baseada na separação entre sujeito e objeto, compreendida em sua concepção histórica como um momento de exacerbação da autoconstituição, no qual o imaginário e a intimidade foram incorporados ao universo das mercadorias², uma questão se destaca, no que diz respeito à contemporaneidade, no ensaio de Alexandre Santos sobre as imagens da noite dos fotógrafos Gyula Halász (1899-1984), ou Brassaï, e Kokei Yoshiyuki (1946).

I.

Com efeito, o pesquisador entende que a “vitalidade utópica que gravita nas imagens da noite” (em grandes metrópoles) de Brassaï e Yoshiyuki está depositada no fato de que ambas as poéticas, sustentadas no aspecto documental, findam por gerar uma memória acerca do universo em pauta e promover o ingresso efetivo de temas marginais no campo do discurso artístico. Em outras palavras, mais do que transgredir, ao terem suas imagens transpostas para o suporte livro, as “micronarrativas urbanas errantes” dos artistas húngaro e nipônico contaminam a ordem vigente.

De todo modo, me parece que foi exatamente a ideia de que tanto Brassaï quanto Yoshiyuki efetuam uma viagem au bout du monde – ou seja, trazem consigo uma condição de certa marginalidade –, por meio de suas fotografias da noite, que fez com que Santos instaurasse o diálogo entre eles. Sendo assim, se aquele que transgride não apenas desobedece a uma regra, mas vai aonde outros não estão, conhece algo que outros não conhecem, uma questão importante se impõe: qual a função da transgressão em Brassaï?

Entendemos que a associação estabelecida pelo autor entre ambas as obras vem iluminar duas dinâmicas (básicas), relativas ao uso da imagem, que identificamos estarem presentes em nossa atual “sociedade do espetáculo”3. A primeira delas diz respeito ao já notório uso da imagem no registro da representação (Vorstellung) e a segunda, ao uso da imagem no âmbito da apresentação (Darstellung). A distinção é importante, uma vez que o registro da representação tem sido associado à ideia de produção de subjetividade, enquanto o registro da apresentação se relaciona à experiência de constituição de subjetividade na contemporaneidade.

Como sinalizado alhures, vale resgatar: consideramos que a relevância da experiência artística está aí depositada na medida em que se institui um lugar onde não só intensidade e excesso pulsionais têm a possibilidade de se fazer presentes, como também há a possibilidade de constituir destinos para as forças pulsionais, ordenando circuitos e inscrevendo a pulsão no registro da simbolização.4

Assim, a tese de Alexandre Santos é a de que a poética que constitui a obra da década de 1930 do fotógrafo húngaro oscila entre o “ato de espreitar” e o de “produzir narrativas encenadas”, seja por amigos, seja por personagens da noite com os quais conviveu. E, de fato, é possível pensar que a concepção acima antecipe a ideia de que a função da transgressão em Brassaï estaria depositada no uso da fotografia da noite parisiense enquanto produtora de subjetividade.

Dito de outra forma, como frequentador da boemia parisiense e dono de um “arquivo de imagens que faz emergir a Paris das alteridades”, tanto dos “modos de vida errante das ruas quanto dos ambientes privados dos guetos”, o esvaecimento dos limites – ou hibridismo, como prefere o autor – entre realidade e ficção, entre a vida do artista e suas imagens noturnas, permite entender a experiência artística por ele vivida como um modo de constituir uma realidade à parte. Ou, então, como produção de subjetividade, e é isso o que nos interessa destacar, por meio do registro da representação – fundamentalmente, na medida em que suas fotografias da noite nos convidam a imaginar a cena encenada, como que a continuar a “contar” a história representada, de maneira tal que podemos pensar em exercícios de produção de subjetividade.

II.

E no caso do fotógrafo nipônico Kokei Yoshiyuki, cujo nome verdadeiro ainda parece ser desconhecido do público? Qual a função da transgressão, presente em sua obra da década de 1970? Nas palavras de Santos, na série “The Park”, as “imagens (da noite realizadas nos parques de Tóquio) mostram situações marcadas pela pluralidade desejante, nas quais aparecem interações eróticas tanto entre homens e mulheres quanto entre homens, (… em que) há um forte direcionamento para a contravenção às regras da sexualidade como prática privada”. E, continua, “pode-se afirmar que não existe uma separação clara entre os papéis sexuais desempenhados pelos envolvidos nas imagens (…), os quais são transitórios, de acordo com o desenvolvimento da ação. Do fetiche do voyeur que espreita solitário pode-se passar ao fetiche do participante que toca o seu objeto de desejo”, assim como também o “próprio fotógrafo pode ocupar (…) o lugar de um espreitador ou (…) de um voyeur”.

De fato, é exatamente essa dinâmica – a ausência de separação entre os papéis sexuais desempenhados pelos envolvidos; a ampliação da experiência de voyeurismo; ou seja, a não adaptação da sexualidade humana vindo indicar, enfim, a existência de uma intensidade pulsional não ligada, presente na cultura contemporânea – que nos parece importante destacar. Pois, na medida em que o conceito de pulsão escópica permitiu à psicanálise restituir uma atividade para o olho como fonte de libido – e não mais como fonte de visão –, devemos recuperar que o escopismo é constituinte da própria libido, do próprio desejo5. Não sendo da ordem da necessidade, a pulsão escópica não se ancora em nenhuma função fisiológica, como, por exemplo, a pulsão oral – a criança que pede o seio à mãe –, ou mesmo a pulsão anal – a mãe que pede as fezes à criança, não havendo fase escópica do desenvolvimento libidinal.

Poderíamos considerar ainda que, se o escopismo constitui-se como o paradigma da pulsão sexual – é constituinte do próprio desejo –, a atividade sexual de “ver” é derivada do tato: o desejo despertado pela visão do corpo escondido por “véus” impele o sujeito a desnudar o outro. Nesse sentido, ver é tocar, e o ato de tocar é guiado pelo olho que torna erógeno o corpo. Ou seja, a pulsão escópica confere ao olho a função de tocar com o olhar, de despir com o olhar, de acariciar com o olhar. Não há palavras para dizer o olhar – o olhar tem, na verdade, uma consistência inapreensível. Nós não temos necessidade de ver e, sim, desejo de olhar: “um olhar não se pede – ele comparece ou não”6.

Assim, a função da transgressão, presente nas imagens da noite da década de 1970, de Yoshiyuki, parece estar associada, como assinala de maneira sensível e sagaz Alexandre Santos, ao “objetivo de inscrever (…) uma determinada fatia do real no plano visual da imagem”. Por outro lado, se o artista não prioriza uma “didática” sobre o tema, assim como também não propõe julgamentos de valor, é possível acrescentar que as obras do fotógrafo nipônico condicionam o observador à própria experiência voyeurística – em última instância, ou o espectador vive a experiência do voyeurismo, ou não vê as suas imagens. E, de modo tal, que as fotografias da noite de Yoshiyuki instituem a “inscrição do Real” – ou, das intensidades e excessos pulsionais não ligados – por meio da própria experiência, na medida em que invocam o observador à experimentação – em oposição, de fato, à representação de uma experiência (já) vivida.

Notas:

¹ Esse artigo dialoga, na função “debatedor”, com o ensaio “Fotografia e espreita: a noite nas imagens de Brassaï e Kohei Yoshiyuki”, do Prof. Dr. Alexandre Santos (UFRGS/abca-RS), no seminário “Pesquisa na ABCA: Balanço e Perspectivas”, realizado em 20-21 de agosto de 2013, MAC-USP. Agradeço à comissão organizadora o convite.

² Cf. Jameson, Fredric. (1991) Pós-Modernismo – a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2002; tradução de Maria Elisa Cevasco.

³ Cf. Debord, Guy (1967). A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997; tradução de Estela dos Santos Abreu.

Cf. Bartucci, Giovanna. (2000) “Sublimação e processos de subjetivação: entre a psicanálise e a arte”. In: Bartucci, Giovanna. Onde tudo acontece – cultura e psicanálise no século XXI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. A discriminação entre os conceitos “produção de subjetividade” e “constituição de subjetividade” se encontra em: Bartucci, Giovanna. Fragilidade absoluta – Ensaios sobre psicanálise e contemporaneidade. São Paulo: Planeta, 2006.

5 Cf. Freud, Sigmund. (1915) “Pulsiones y destinos de pulsión”. In: Freud, Sigmund. A.E., vol. XIV, 1989, pp. 105-134; Lacan, Jacques. (1964) Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

6 Quinet, Antonio. Um olhar a mais – Ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2002, p. 69. Os desenvolvimentos que se referem à pulsão escópica se encontram no ensaio “O divã na TV: entre os reality shows e a teledramaturgia”. In: Bartucci, Giovanna. Onde tudo acontece – cultura e psicanálise no século XXI. Op. cit.