Giovanna Bartucci entende a experiência da psicanálise como uma obra que faz murmurar
Publicado no caderno Cultura – DIÁRIO CATARINENSE
2 de setembro de 2006
Por Manoel Ricardo de Lima – Poeta e crítico literário
Um dos percursos mais interessantes hoje à percepção das coisas do mundo talvez seja o traçado enviesado de uma leitura possível. Torcer os objetos a serem lidos até os seus limites de entendimento, ampliá-los a um problema maior que aquele apresentado antes ou a algo que possa apenas estar neles. Algo como tatear melhor o livro do mundo, esticando repertório, gesto e, principalmente, sofisticar a forma de ler também até um para além do limite. Por outro lado, perder, talvez, a noção do acúmulo e mais ainda perder a noção de arquivo, de bagagem, de uma origem, mas ver o desvio para uma escuta do que está à deriva, como o barco bêbado de Rimbaud, ou simplesmente daquilo que nos é diferente, daquilo que não sabemos. Desleixar a regra.
A psicanalista e ensaísta Giovanna Bartucci, idealizadora e organizadora da importante coleção “Psicanálise e Estéticas de Subjetivação” (Imago), tem se dedicado, de alguma forma, a esticar este problema a partir da psicanálise. Autora de Borges: a realidade da construção. Literatura e psicanálise (Imago) e Duras. A doença da morte: um direito de asilo (Annablume), lança agora Fragilidade absoluta (2006, 240 págs.), pela editora Planeta, para pontuar este seu esticamento ao mundo contemporâneo, frágil e com esta perene pulsão de morte, e ainda esta ferida aberta do mal-estar. Numa rápida e boa conversa por e-mail, Giovanna Bartucci diz um pouco deste seu novo livro e de algumas questões que passeiam por ele.
DC – Você organizou três volumes interessantíssimos em torno à psicanálise: com o cinema, a literatura e as artes visuais, e ainda o que você chama de estéticas de subjetivação. No que este seu Fragilidade absoluta tem a ver com estes volumes anteriores?
Giovanna Bartucci – Posso dizer que Fragilidade absoluta é o fundamento teórico-clínico sobre o qual a idealização da coleção “Psicanálise e Estéticas de Subjetivação” se deu. Refletir acerca das diferentes possibilidades de subjetivação, na contemporaneidade, a partir da psicanálise e um terceiro termo − no caso da coleção, o cinema, a literatura e as artes em geral − exigiu que eu repensasse a herança psicanalítica que trago comigo. Foi o que fiz no Fragilidade, a partir da história, da sociologia, da literatura e do cinema.
DC – As duas primeiras partes deste seu livro apontam mais radicalmente para uma dimensão do político como detonador, também no sentido de uma origem e não apenas de fim, numa formação das subjetividades contemporâneas. Fale um pouco sobre estas questões que você aborda, e de que forma.
Giovanna – Claro, você tem razão. O político em seu aspecto mais amplo, naquilo que diga respeito à vida coletiva-social. O fato é que, ao perfazerem o caminho que chama a atenção para o declínio da função paterna na sociedade contemporânea, os dois primeiros ensaios do livro terminam por evidenciar a importância da história, dos movimentos sociais e dos fenômenos culturais, em relação à constituição dos sujeitos. E é importante destacar que a noção de produção de subjetividade − que inclui aspectos que dizem respeito à construção social do sujeito, em termos de produção e reprodução ideológica e de articulação com variáveis sociais que o inscreveriam em uma perspectiva histórica específica − não traz em si uma função “constitutiva”. As condições de constituição psíquica se estabelecem, na verdade, por meio de variáveis cuja permanência transcende modelos sociais e históricos, podendo ser circunscritas, então, ao seu campo de referência conceitual. Já na contemporaneidade, as condições de subjetivação e as condições de constituição psíquica dos sujeitos não se sobrepõem, podemos mais facilmente constatar uma das descobertas mais fundamentais da psicanálise, o caráter não adaptativo da sexualidade humana. De maneira geral, a implicação mais evidente destas características contemporâneas é o fato de que tornou-se possível identificar movimentos sociais e fenômenos culturais cujas dinâmicas “trabalham” em favor da constituição dos sujeitos, quando antes isto não seria possível. Diferentemente do que se possa pensar, fenômenos de cultura de massa, tais como os programas Big Brother Brasil, ou, mesmo, Saia Justa, em sua primeira versão, são os exemplos mais acessíveis. Seria possível, ainda, dar outros exemplos, no que diz respeito à literatura, ao cinema, às artes plásticas, ao teatro e também à dança. Há espetáculos interessantíssimos que caminham nessa vertente.
DC – Num outro movimento, depois, você passa a discutir questões relacionadas a Borges, entre a psicanálise e a escritura; Almodóvar, o amor; e ainda Maria Madalena como uma certa configuração de sintomas à clínica cotidiana hoje. Como você inscreve esta forma de dizer o seu trabalho de pensamento?
Giovanna – Uma primeira questão é o fato de que o trabalho clínico é algo que permanece no consultório, na medida em que diz respeito ao analista e ao seu analisando − a questão do sigilo na clínica. A possibilidade de compartilharmos esta experiência parcialmente dá-se, então, por meio de objetos da cultura, da literatura e das artes de uma forma geral. Uma outra questão diz respeito à alteridade. “Constituir-se como um lugar no qual a alteridade poderá inscrever-se enquanto tal”, como desenvolvo no Fragilidade, implica deixar-se fecundar. Assim, será somente no momento em que o nosso saber é interrogado por uma experiência-outra − e não ao contrário − que a psicanálise poderá constituir-se enquanto tal. Daí a importância desta conjunção “psicanálise e…”, que por vezes tem uma função aditiva, por outras, dedutiva, e, ainda, adversativa ou de contraste.
DC – Maurice Blanchot dizia que a morte não é a experiência patética de uma última possibilidade humana, mas que pode ser o sussurrar interminável da existência, aquilo que uma obra faz murmurar. Tomar a experiência psicanalítica como “força subversiva” pode ser tomá-la também como este murmúrio?
Giovanna – Eu diria que poderíamos tomar a experiência psicanalítica como “uma obra que faz murmurar”. O que desejo ressaltar com isto é que a temática da “constituição de subjetividade” − ou seja, desta formulação paradoxal que fiz avançar em 1998, e que agora aprofundo em Fragilidade − está diretamente relacionada à ideia de que que “não basta desejar para ser, é necessário tornar-se”. Como você bem assinalou em outro momento, no ensaio a partir do amor e de Almodóvar, especificamente em Ata-me!, a descoberta do amor é salientada para fazer falar um conceito de desejo e uma pulsão de morte. O fato é que o conceito de desejo, concebido como elemento ordenador de um universo cinematográfico, aproxima tal narrativa de um tipo de relato em que a significação é dada a partir do “falo” − ou seja, um fator necessário para a inscrição da condição de perfeição e completude − como referente. Conceber uma “narrativa” a partir da “fala” da pulsão de morte não erotizada, silenciosa, implica constituir destinos possíveis para esta força pulsional, inscrevendo a pulsão no registro da simbolização – ou seja, implica a constituição de subjetividade dada por meio do exercício da experiência psicanalítica, ou, de “uma obra que faz murmurar”.