Coleção mostra como o estudo terapêutico participa da criação das formas artísticas
Publicado no caderno Cultura – O Estado de S. Paulo – Pág. D6
19 de agosto de 2001
Por Ubiratan Brasil – Jornalista
Psicanálise como produto e produtora da modernidade – a partir deste pensamento, a psicanalista e ensaísta Giovanna Bartucci organizou uma pequena coleção de três volumes que relaciona a psicanálise com as artes, em especial o cinema, a literatura e os trabalhos visuais em geral. O primeiro volume, Psicanálise, cinema e estéticas de subjetivação (Imago, 263 pags.), foi editado no ano passado. O seguinte, Psicanálise, literatura e estéticas de subjetivação (Imago, 412 pags.), será lançado amanhã, entre 19 e 22 horas, na livraria Fnac Pinheiros (Rua Pedroso de Moraes, 858). Haverá ainda um debate sobre psicanálise e literatura, com a coordenação da mesa de Alberto Dines e a participação de Maria Rita Kehl, Marilia Pacheco Fiorillo, Miriam Chnaiderman, Nelson da Silva Jr. e Noemi Moritz Kon.
“Assim como a experiência de uma psicanálise, a literatura, o cinema e as artes em geral seriam ‘lugares psíquicos de constituição de subjetividade’, para aqueles sujeitos cujos destinos serão sempre o de um projeto inacabado, produzindo-se de maneira interminável”, comenta Giovanna. “Dessa forma, há aqui a ideia de interminabilidade, de um ‘constituir-se’ permanentemente.”
Nesse sentido, o convite feito a cada um dos colaboradores não foi gratuito, observa Giovanna. Artistas, cineastas, escritores e psicanalistas de diferentes orientações teórico-clínicas encontraram na temática e interlocução propostas a possibilidade de dar continuidade às próprias pesquisas.
É o caso, por exemplo, do crítico e roteirista Jean-Claude Bernardet, que monta sua reflexão a partir de sua própria produção cinematográfica, que são os filmes São Paulo, sinfonia e cacofonia (1995) e Sobre anos 60 (1999), obras montadas a partir de colagens. O resultado é o texto “A subjetividade e as imagens alheias: ressignificação”, em que o processo é explicado. “Ao fazer filmes com pedaços de filmes já feitos, penso assumir plenamente esse ser que se vive como um feixe em que são discerníveis os gravetos que se poderia considerar pessoais e os que se poderia considerar sociais”, escreve.
O ponto de partida de todos os demais textos é o mesmo, ou seja, uma reflexão iniciada tanto por um trabalho pessoal como provocada por outras pessoas. É o caso, por exemplo, do texto do psicanalista e professor Joel Birman: a partir de um comentário feito por uma jovem estudante, que revela seu desagrado com o filme Táxi, de Carlos Saura, por não apresentar a depuração técnica e o virtuosismo na direção constante nos seus outros filmes, Birman faz uma consideração sobre a feiura, classificada como forma de horror no neonazismo.
Papel do feio
“Neste universo macabro, a alteridade enquanto tal deixa de existir, ameaçando com a barbárie não apenas a existência da cultura espanhola como também de toda a tradição europeia”, escreve Birman. “É isso que a nossa jovem crítica precisa compreender profundamente, para que sua veemência possa ser a fonte de uma verdadeira poiesis. Para isso, enfim, é preciso enfatizar o papel do feio numa literatura crítica da atualidade, no qual se suspende o belo e se repõe o trágico como sublime”.
“Nesse sentido, a analogia entre o indivíduo e sua cultura pode ser fiel e instrutiva, mas ainda assim é uma analogia”, observa Giovanna Bartucci. “É nesse sentido que há autores contemporâneos (a psicanálise pós-freudiana) que entendem que a leitura freudiana do mal-estar na modernidade se realizou numa linguagem psicanalítica, efetivamente – consequentemente ‘a psicanálise seria uma leitura da subjetividade e de seus impasses na modernidade’”.
O livro que será lançado amanhã, Psicanálise, literatura e estéticas de subjetivação, segue a mesma linha que o primeiro volume da coleção e antecipa trabalhos de seus colabores. A obra abre com um texto da escritora e historiadora Marilia Pacheco Fiorillo, que antecipa capítulos de sua novela inédita, O Jardim das Delícias. Trata-se de um romance que se ocupa do desencontro entre os sexos. “Mas apenas do desentendimento entre uns e outros: cristãos e muçulmanos, pagãos e cristãos, irmão e irmã, eventualmente até entre amantes”, escreve Marilia, que se inspirou em uma obra árabe do século 14.
Em outro texto, partindo de um comentário de Michel Foucault, para quem o puro exercício de adestramento pessoal pela crítica “constitui também uma certa maneira de cada um se manifestar a si próprio e aos outros”, João Frayze-Pereira analisa as cartas trocadas entre Mário de Andrade e Cândido Portinari para afirmar que, por meio do pintor, o escritor expressa uma parte de si, dimensão que dificilmente chegaria a contemplar a partir de si mesmo.
Depois de listar uma série de trechos das cartas e questionar se a correspondência expressa uma relação de pura amizade, Frayze-Pereira escreve: “Essas cartas de Mário de Andrade têm um forte apelo para a psicanálise, sobretudo no tocante ao fascínio que o ser humano sente por si mesmo com tanta facilidade e que, novamente pensando em Freud, contribui para a dimensão alienante, própria do estado amoroso, através de uma projeção do seu ideal no outro”.
É curiosa também a epígrafe escolhida para iniciar o texto, colhida de uma carta enviada por Otávio de Freitas Júnior para Mário de Andrade: “Dê um jeito de escrever, carta sua eu acho melhor que psicanálise”. Frayze-Pereira conclui, com muito cuidado, que a mágoa e o ressentimento revelados por Mário em relação a Portinari são consequências de uma aflição frente ao risco de perder os outros. A afirmação não é taxativa, assegura acertamente o autor, por não ter a chance de conviver com Mário de Andrade, o que seria útil para seu devaneio associativo e o trabalho paciente de escuta.
O terceiro volume da minicoleção, Psicanálise, arte e estéticas de subjetivação, que a Imago deve lançar no início do próximo ano, vai trazer “Minuano”, diário da concepção e produção da instalação permanente que tem o mesmo nome, realizada por Nuno Ramos nas proximidades do município gaúcho de Barra do Quaraí, na fronteira entre Brasil, Argentina e Uruguai. “Nesse sentido, a psicanálise também funciona como instrumento crítico da cultura – intrometendo-se, promovendo cortes, discriminando, separando, constituindo uma diferença, promovendo ‘permanência’, neste nosso mundo fugaz e descartável”, comenta Giovanna.