Tramas e desenredos

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Guimarães Rosa, de Cleusa Rios Pinheiro Passos, investiga as personagens femininas do ficcionista

Publicado no caderno Mais! – Folha de S.Paulo – Pág. 20
21 de janeiro de 2001

Giovanna Bartucci

É verdade, distanciados agora por algumas décadas, podemos constatar modificações processadas na crítica literária brasileira. Ao abandono dos critérios de literariedade, ressaltando a desvinculação do caráter fechado e autosuficiente do texto literário, acrescentam-se os discursos das ciências humanas, tais como da antropologia, da sociologia, entre outros; e ainda, da psicanálise. Tal procedimento termina por incidir no caráter essencialista e universalista subsumidos no caráter autosuficiente do texto literário – investe-se, assim, na ampliação do conceito de texto.

Assim é que, acentuadas as discussões de ordem teórica e metodológica, e seus operadores conceituais, o que vemos agora é a revalorização da história e o exercício da prática interdisciplinar e cultural. É nesse sentido que, atualmente, há uma relação que se pauta pela coordenação e “contaminação” entre diferentes discursos. Em outras palavras, diferentes enunciados não se encontram subordinados, uns em relação aos outros, por meio de traços hierárquicos, mas, heterogêneos, se imbricam e se diferenciam.

Assim é Guimarães Rosa: do feminino e suas histórias (Hucitec/Fapesp, 2000, 248 págs.), livro de Cleusa Rios Passos. Dialogando com críticos diversos, Passos se ocupa em desvelar e pontuar a enorme complexidade das personagens femininas na ficção rosiana, uma vez que as mesmas “não constituem perfis estanques ou polarizações redutoras”. Como destaca a autora, “há uma espécie de tensão que atua, explícita ou implicitamente, na conformação de cada uma (das personagens femininas), produto da ambiguidade fundamental da escritura do autor, sempre a se mover entre a realidade e o devaneio, o cotidiano prosaico e a magia”. Embora na ficção rosiana “a presença feminina se (faça) mais discreta, restrita ao amor e à família, à memória e à manutenção da oralidade tradicional das contadoras de ‘causos’, particulares às comunidades rurais de diferentes civilizações (…), sua configuração do feminino revela peculiaridades que estão longe de se mostrar desprezíveis para a abrangente compreensão do intricado universo do escritor”. Assim, para Passos, “a plasmação das personagens femininas pode encontrar múltiplas e insuspeitadas fontes”.

É nessa medida que a psicanálise, fundamentalmente de perspectiva lacaniana, é utilizada aqui: como “apoio teórico” na tentativa de se adentrar o universo rosiano, “uma vez que se trata da configuração de mulheres, seus afetos, prazeres e males, e, em particular, dos efeitos da diferença que as marcam em cada narrativa”. A autora, no entanto, nos alerta para o fato de que “a prioridade estará em aproximações críticas, nascidas do encontro com experiências ficcionais”. “Ao contrário de parte da crítica psicanalítica, não se buscará fazer apenas valer o encontro do inconsciente da leitora (Passos) com as sugestões dos textos, e, sim, pontuar liames ancorados nele e por ele preponderantemente tecidos.” A consignia de Passos é a de que “o alvo não está nas adequações entre certo manancial teórico (aspectos da psicanálise) e histórico e a escritura rosiana, pois, sutilmente, esta desloca aqueles saberes, fazendo-os girar – como diria Barthes – relativizando-os; o trabalho se centrará na articulação do texto com a cultura e seu modo de reorganizá-la”.

Assim, é nesse sentido que se repensar a questão da prática interdisciplinar, como querem alguns críticos, em termos de simultaneidade temporal e não apenas da coexistência espacial entre ideias representa um avanço, permitindo a abertura para a relação interdisciplinar segundo uma ordem transversal e “contaminadora” em que se relativizam os princípios da anterioridade e posterioridade das descobretas. No entanto, se se trata de interpretar a literatura como produto capaz de suscitar questões de ordem teórica ou problematizar temas de interesse atual, sem necessariamente se restringir a um público específico, tal procedimento também termina por iluminar, naturalmente, apoios teóricos que findam por se mostrar desnecessários. Sejamos claros: se Freud “oficialmente” compreende a obra de arte basicamente como um substituto do que foi o brincar infantil (1908), uma vez que aproxima o artista – aqui o escritor criativo – da criança que ao brincar cria um mundo próprio reajustando seus elementos de uma forma que lhe agrade, mantendo, com isso, uma nítida separação entre seu mundo de fantasia e a realidade, não podemos deixar de pontuar que tal compreensão aproxima tal modalidade estética a características do princípio do prazer, trazendo consigo um caráter regressivo e infantil.

Sendo assim, embora o suporte psicanalítico propicie ganhos ao literário, coexistindo com elementos do mito, religiosidade, tradição literária etc., a originalidade do texto rosiano provém, como destaca a autora, da impossibilidade de “pensar (Rosa) sem o renomado trabalho verbal, produto de uma língua a um tempo conhecida e estranha, apontada desde Sagarana como linguagem popular e inventiva, contagiada por elementos do universo mítico”. No entanto, Passos observará que ao se preocupar com lapsos, chistes e mecanismos oníricos, Freud “acabou por assinalar procedimentos também integrantes dos fios da organização literária”. Mas, se “a presença do desejo, algo atuante e dissimulado na escritura, não deve ser descartada”, o testemunho do desejo em obra dá-se, fundamentalmente, a partir da fala engendrada no cerne da experiência psicanalítica, junto a um outro que escute, que se cale, que pontue, que interprete. Afinal, com Passos – e talvez por isso mesmo por vezes seja desnecessário o “apoio teórico psicanalítico” – apreendemos que a “verdade”, na ficção rosiana, “já está, de alguma forma, inscrita, cabendo-lhe recontá-la de acordo com a própria estória e garantindo, pela reescritura, marcas pessoais e autoria”.

Assim, se a leitura da obra de arte é pouco explorada a partir da perspectiva do já conhecido dualismo pulsional freudiano entre pulsões de vida e de morte (1920), será essa mesma pulsão de morte, uma vez que não se articula ao registro da linguagem, que imporá ao sujeito a necessidade de inscrição no registro da simbolização. Daí, talvez, a relevância da “experiência literária”: ao mesmo tempo em que as coisas são inalcançáveis pela arte, institui-se um lugar onde torna-se possível, por meio da criação artística, encontrarmos na inscrição da pulsão no registro da simbolização e sua reordenação do circuito pulsional uma economia outra que possibilite o trabalho de criação, de produção de sentido e de ligação.