Tão longe, tão perto

Literatura

Estudos sobre as relações entre psicanálise e literatura saem em busca dos limites e especificidades do discurso psicanalítico, mas encontram, em lugar da terra firme, o campo vasto e comum da experiência de alteridade

Publicado na Revista Reportagem – revista da oficina de informações
Ano IV – nº 44 – Págs. 47-48
Maio de 2003

Por José Bento Ferreira
Mestre em Filosofia

 

Parece haver algum consenso nesses estudos das relações entre psicanálise e literatura a respeito da importância do “sentimento estranho” (em alemão, Unheimliche), que Freud descreveu a partir de certas obras literárias. Do que se diz unheimlich, também pode ser dito “inquietante”, “sinistro”, “espantoso” ou, segundo a feliz formulação de Maria Rita Kehl em um ensaio do livro, “estranhamente familiar”, porque o sentimento estranho, assim como a palavra alemã, contém em seu interior algo de familiar (heimlich), ainda que o negue. Nas palavras de Freud, é o “momento do retorno do mesmo”, em que involuntariamente ocorre “uma regressão aos tempos em que o eu ainda não se distinguia bem do mundo exterior e do outro”.

 

Embora Freud visse no escritor E. T. A. Hoffmann o “mestre insuperável do estranho”, não faltam casos comparáveis às descrições freudianas entre os grandes mestres da literatura moderna, antes e depois do advento da psicanálise. Poe, Flaubert, Machado de Assis, Joyce, Borges e Fernando Pessoa são alguns dos autores mais abordados pelos psicanalistas e teóricos da literatura, como mestres do Unheimliche. Estranhamente, não se fala da “memória involuntária” de Proust, que poderia sugerir relações esclarecedoras com o que nos diz Freud. Pois não deixa de ser um sentimento estranho o que conduzia o narrador da Recherche de volta ao passado quando ele mesmo menos esperava, sentimento porém que não se manifestava quando o narrador o queria, mas apenas quando alguma sensação deflagrava-o inesperadamente.

 

Obsessão pelos detalhes

Maria Rita Kehl dá uma pista para explicar a estranha ausência da figura de Proust ao afirmar que o romance moderno é a expressão do sujeito neurótico, “obcecado por deter no tempo e na memória todos os detalhes de uma vida que não faz sentido”. A psicanálise suscitaria certo desprendimento em relação a essa obsessão. O sujeito desprendido, que “atravessou uma experiência de psicanálise”, já não tem a pretensão narcísica de se imaginar como autor e protagonista do romance da sua vida. Para Maria Rita, “narrar-se sob a forma moderna do conto, ou talvez do poema, representa a conquista de uma elegância que o pesado romance oitocentista está longe de alcançar”. Mas até que ponto se pode atribuir a forma do romance às pretensões de alguns romancistas?

 

Embora Balzac tivesse a intenção de descrever com precisão científica as relações sociais do seu tempo, a Comédia humana não deixa de ser um conjunto de romances escritos sob a liberdade característica do romance moderno, que tanto destoa da prosa do século 18, dos contos filosóficos de Voltaire, preocupados com a brevidade e a elegância de uma narrativa veloz, a serviço de uma tese determinada. Essa vontade de conter tudo ao se contar uma história, vontade de exprimir em vez de reproduzir, toma a forma romanesca muito mais livre do que qualquer outra, pois as possibilidades expressivas de todas as formas cabem no mesmo romance – do lirismo à ironia, do pensamento à paixão.

 

O que se sente ao ler Balzac, Stendhal ou Flaubert não é a obsessão por “deter detalhes da vida”, mas a vontade de exprimir um sentimento de vida que uma prosa “elegante” nem sempre pode conhecer. Trata-se da experiência imponderável do jovem atirado ao abismo das relações humanas, da transformação do desajeitado e ingênuo no homem experimentado, “do mundo”. Esse savoir du monde talvez seja o maior legado da literatura do século 19 e a verdadeira matriz da ideia de “experiência vivida” (Walter Benjamin) como caracterização da moderna experienêcia literária. E que sentimento preside essa experiência do sujeito ingênuo diante do mundo moderno, da exploração do homem pelo homem, das revoluções, das grandes cidades, senão um profundo sentimento de estranheza que poucos pensadores puderam descrever tão bem quanto Freud, mas que certos escritores souberam exprimir magistralmente com seus “pesados romances”?

 

Autoanálise

Esse desentendimento é sintomático dos problemas que envolveram as relações entre literatura e psicanálise desde o surgimento da jovem tradição da escrita psicanalítica. Problemas complexos, mas que levantam questões cruciais, tanto para a teoria literária quanto para a psicanálise. Os estudos reunidos por Giovanna Bartucci resultam de um momento particular da tradição psicanalítica no qual a psicanálise precisa lidar com os limites da sua própria autonomia e se perguntar em que consiste a especificidade do seu discurso – como numa autoanálise. A escravidão em busca do específico, porém, não atinge terra firme, mas apenas uma passagem para o campo vasto das experiências literárias.

 

Pois a matéria-prima da expressão literária se confunde com o que Joel Birman reconhece como “seiva constitutiva do escrito psicanalítico”: certa “carnalidade transferencial”, uma expressão familiar aos psicanalistas, mas estranha aos leigos, que pode no entanto ser entendida a partir do caráter intersubjetivo ou dialógico da linguagem literária. Nada mais “estranhamente familiar” do que a linguagem comum transfigurada pelo escritor para exprimir uma experiência ainda não expressa, suscitando-a no leitor. O discurso psicanalítico também se funda numa certa forma de diálogo, em que não cabe ao psicanalista enunciar suas conclusões, mas mostrar ao interlocutor algo implícito no que ele fala, fazer com que este perceba sua própria condição se ouvindo – para além do que disse ou quis dizer, ouvindo o que foi dito sem querer.

 

Voz e silêncio

A experiência de transferência no processo de psicanálise se compara à interpelação que a linguagem literária exerce sobre o leitor ao incorporar-se a sua experiência acumulada e modificá-la. Sua força não reside nas próprias palavras, mas na determinação recíproca delas entre si e na reciprocidade entre elas e o conjunto de significações sedimentadas naquele que lê, no ato da leitura. De modo que a capacida­de expressiva de uma obra literária não reside pura e simplesmente nas letras, mas na ação que o escritor exerce sobre o leitor arrebatando-o com sua voz. O leitor, por sua vez, empresta a essa voz o corpo das suas próprias significações, fazendo com que ela soe de modo inédito.

 

A sombra desse outro olhar no horizonte da experiência de expressão também paira sobre uma poética do silêncio, como a de Paul Celan, mencionada no inquietante estudo de Nelson Silva Júnior sobre Fernando Pessoa. Nesse caso, é ainda mais inten­sa, pois os versos de Celan estão marcados pela dissolução violenta da identidade entre o tu e o eu do poema, revivida a todo instante pelo uso da palavra. Não de uma palavra qualquer, mas de “linguagem singular”, como diz Luiz Costa Lima citando Montaigne, a linguagem que somente o “escritor de qualidade” sabe desenvolver, mas que é empregada por quem quer que se cale por sentir que as formas feitas da linguagem não fazem jus ao que teria a dizer.

 

Por isso, a linguagem é essencialmente unheimlich: íntima e estranha ao mesmo tempo, capaz de fazer com que o leitor se reconheça em outra pessoa, com que um es­critor fale a uma comunidade de leitores atingindo sempre cada leitor em particular. Essa capacidade quase milagrosa de converter os entraves da vida em experiências de expressão é o que se pode entender pelo termo forjado por Giovanna Bartucci para acolher a diversidade das contribuições que compõem seu livro – “estéticas de subjetivação” –, certamente derivado da sua visão da escrita literária como “lugar psíquico da constituição da subjetividade”. Giovanna mostra, a partir de Borges, que ao escrever como ninguém jamais havia escrito, atingindo uma voz própria e singular, o autor se inscreve em sua escrita, como se nela fosse ele mesmo convertido em outro. A experiência de expressão seria então semelhante à experiência do reconhecimento da imagem no espelho, em que, ao se ver como um outro, a criança toma consciência da sua individualidade e de que é um indivíduo em meio aos outros.

 

Por meio das “estéticas de subjetivação”, essa experiência lapidar da alteridade pode ser compartilhada, pois não se restringe ao autor. Pelo contrário, a experiência só se cumpre quando a obra de arte é vista, ou lida, pelos outros olhos a que sua mensagem se destina. Parafraseando Bartucci, a ideia que resta depois de atravessadas as diversas perspectivas oferecidas pelos textos do livro é de que o jovem Georgie não poderia se tornar sozinho o célebre Borges e que o “lugar psíquico” em que o autor aparece para si mesmo como um “duplo” é um campo intersubjetivo, pois o processo de transformação pressupõe um outro olhar, desde que se dê como uma experiência de expressão.