Que homem é esse?

livro

Publicado no Paisagens da Crítica – Blog de Júlio Pimentel Pinto
6 de outubro de 2006

Por Júlio Pimentel Pinto
Historiador e Professor da Universidade de São Paulo USP

Fragilidade absoluta fala do homem irreversivelmente moderno. Ou do homem pós-moderno. Aquele que, além de viver o mal-estar na cultura, enfrenta um conjunto de circunstâncias sociais que trocam a histeria pela depressão; aquele que se faz e vive em meio a um paradoxo: o da articulação de sua produção de subjetividade e lugar social ao processo de constituição psíquica. O sujeito supõe que alguns referentes que reconhece na sociedade são universais (ou universalizáveis) – sem que obrigatoriamente o sejam – e os assume. O histórico da formação subjetiva se confunde, assim, com o transcendente da constituição psíquica e o jogo se torna complexo e perigoso.

 

Não é a primeira vez, ou o primeiro livro, em que Giovanna Bartucci explora essa tensão. Esses sete ensaios sobre psicanálise e contemporaneidade – subtítulo do livro – mostram que ela já percorreu tais caminhos e procurou pensá-los de muitos jeitos: buscando a literatura (em estudos anteriores sobre Borges, por exemplo), avaliando a prática clínica e explorando percursos teóricos. Em Fragilidade absoluta, tudo se reúne, agora acrescido de uma preocupação histórica mais explícita, principalmente quando se indagam sentidos da experiência da contemporaneidade e se coloca (para ela mesma e para nós) uma questão essencial: que homem é esse? A sentença pode ecoar a indagação feita por Primo Levi – é isto um homem? – mas é claro que a pergunta crua de Levi foi lançada numa situação extrema, em que a própria condição humana era desconsiderada. Por isso, a questão de Giovanna é mais tolerante. Mas não menos perplexa. O homem de que ela fala, afinal, é outro, e ele pode até ignorar Levi, dissolvê-lo pelos cinqüenta anos que se passaram e impor à sua figura um conjunto de preocupações miúdas: as suas inquietações.

 

Interessante é que a leitura de Giovanna parte sempre da clínica psicanalítica, sem jamais se limitar a ela. Ainda que reconheça e se preocupe em valorizar a experiência de análise, percebe que o paradoxo não implica exclusivamente o indivíduo de que trata. É um fenômeno social e histórico e assim deve ser considerado. Transparece nos relatos e nos eventos quotidianos a que assistimos. Está na literatura, no cinema, no teatro, nas ruas. Reveste-se de formas mais elaboradas ou se manifesta de maneira explícita. Em todos os casos é contundente e aflitivo. E compreendê-lo inclui um esforço narrativo, daí a preocupação de Giovanna de circular por formas distintas de texto: do exercício dissertativo predominante em dois dos ensaios (o primeiro e o último) às interferências ficcionais (não apenas no material ocasional de cada ensaio, mas também no procedimento de construção de personagens) e às variações de linguagem e de ritmo da escrita. Quando discute Almodóvar, explora, coerentemente, jogos de imagens, assume uma escrita fortemente metafórica e a introduz com uma breve digressão sobre o amor; quando analisa Borges, dá ao texto uma organização lógica estrita.

 

Mesmo que o leitor não se preocupe em reconhecer as variações de estilo, ele inevitavelmente se sentirá acolhido pelo texto. Porque Giovanna não escreve para psicanalistas: logo de saída destaca que seu livro é para qualquer público e procura, com notas de rodapé ou por meio de repetições, esclarecer alguns termos que usa, aproximar e facilitar a inteligibilidade sem perda de rigor conceitual. Não poderia ser de outra forma. Afinal, se o livro é também um convite a que cada um pense sobre o tempo que vive, seria incoerente apresentar a discussão de forma hermética. Sorte nossa, pois assim podemos penetrar no reino das palavras de Giovanna. Perderemos, talvez, algumas noites de sono, a pensar no paradoxo de que também somos resultado, mas viveremos uma outra dimensão de prazer, a descoberta do outro.