Por que sou gorda, mamãe?

Cintia Moscovich

Cintia Moscovich

Entrevista com Cíntia Moscovich

Para editora Record – Setembro de 2006

 

Marcando uma nova etapa de sua vida profissional, Por que sou gorda, mamãe?, novo romance de Cíntia Moscovich, é fruto da decisão da autora de se dedicar integralmente ao ofício de escritora.

 

Com uma personagem-narradora que engordou 22 quilos e que se dispõe a percorrer a própria história, imaginando que as razões de seu sofrimento estariam no passado, brincando com o limite entre realidade e ficção, Por que sou gorda, mamãe? é um livro sobre “acertos de contas consigo mesma”, mas, também, sobre uma escritora que, afinal, assume o seu ofício de escritora integralmente.

 

Giovanna Bartucci: Por que sou gorda, mamãe? é o seu segundo romance. Bastante distinto de Duas iguais, que também tem como temática o amor e o feminino, este seu novo romance se debruça sobre a temática do amor de mãe, utilizando-se dos temas da alimentação e do corpo. Ainda assim, é difícil não lembrar de Carta ao pai, de Franz Kafka. Seria este romance um “acerto de contas com a mãe”?

 

Cíntia Moscovich: Pois é. Kafka. A ideia inicial de meu livro era justamente dialogar com Carta ao pai de Kafka. Se aquela era a missiva mais poderosa que um filho jamais escreveu a um pai — e eu sempre considerei isso — por que eu não poderia escrever uma Carta à mãe? Bem, era claro que eu podia, estamos sempre dialogando com a tradição, retomando os mesmos temas, nada de novo sob o sol. Ao trabalho.

 

Mas Kafka é brilhantemente áspero, seco, duro, triste. Não julga: expõe fatos — e os fatos falam. E que fatos eu teria que contar? Como arrancar uma escrita tão incisiva da minha cabeça? Aconteceu: o texto não me saía. Foram uns 6 meses de tentativas, de destrinchar minha relação com minha mãe, de escrever me doendo. Ao final, nada que me parecesse razoável. E, pior, escrever não estava me dando mais a satisfação que sempre me deu. E, além de não ter mais o prazer da escrita, eu já havia condenado minha mãe e me transformado numa vítima da crueldade materna — da crueldade do mundo. Comecei a pensar que eu havia ultrapassado vários limites e que tinha de fazer ficção. Qual o sentido de ficar cortando os pulsos em público? Além do mais, a sombra de Kafka ficou grande demais, e eu comecei a sentir uma espécie de temor reverencial. A pretensão me derrubou, eu queria dar um passo muitíssimo maior do que as pernas. Um pouco de sofrimento faz parte do jogo da escrita. Uma depressão que imobiliza não tem nada a ver com criação.

 

GB: E, então, como você resolveu esta questão?

 

CM: Fui para a terapia correndo. A ideia era a seguinte: biografia só durante as sessões. Ou só se eu achasse que dava algo razoável. Deixei Kafka no altar que ele merece, sem incomodar mais o coitado. Só assim comecei a me divertir escrevendo. Foi quando o escritor Luis Antonio de Assis Brasil, que sempre me acompanhou, se deu conta de que comida era tema recorrente no livro, que o texto tinha alcançado um tom mais jocoso e sugeriu um novo título, exatamente esse que acabei por adotar. Relutei, porque o risco de acabar na prateleira de autoajuda era muito alto. Mas, em conversa com Lúcia Riff, minha agente, e com Luciana Villas-Boas, minha editora, acabei cedendo. Vários amigos escritores e bons leitores foram consultados. A ideia era rir: com o humor, o castigo é maior. E eu até podia pensar num acerto de contas com minha mãe.

 

Desisti do tal acerto de contas. Existe um ditado judaico que diz que Deus não podia estar em todos os lugares e, por isso, Ele criou as mães. É um pouco cínico, é verdade, mas não deixa de ser real: a maternidade é uma parceria direta das mulheres com o Criador. E eu ia acabar com essa fantasia, me ocupando em retaliações? Seria injusto comigo e com minha mãe. Ainda mais porque minha mãe é uma mãe amorosa e só fez e faz de crueldade aquilo a que tem direito. A mãe da Gorda é muito pior.

 

GB: Há diferenças entre as funções que ambos os textos exercem nas obras de ambos os escritores. No seu caso, Por que sou gorda, mamãe? já nasce literatura. Não será incorporado a sua obra literária posteriormente, tal como aconteceu com Carta ao pai, de Kafka. Contudo, tanto em Duas iguais, quanto em Por que sou gorda, mamãe? a narradora se utiliza de um prólogo por meio do qual estabelece um diálogo com o leitor, como que introduzindo o tema. De uma forma geral, por que razão a escritora Cíntia Moscovich se utiliza de prólogos em seus romances?  

 

CM: Para mim, literatura não existe se não se conta uma história. Pode ser até a história da inação, mas uma história. Ora, pelo meu ponto de vista, as boas histórias têm início, meio e fim. Escrever um prólogo é preparar o leitor para a história que virá. Assentar um clima de compadrio e cumplicidade com quem me lê. Acho que isso me veio de casa, das histórias que me eram contadas pelas avós, pelos tios, pelo pai e pela mãe. Sem querer reduzir a coisa a uma questão de origem, penso que as famílias judias sempre têm boas histórias (claro, todas as famílias têm boas histórias. É que eu conheço melhor as famílias judias. Nasci no meio de uma delas). São relatos longos, meio truncados, cheios de pausas e de uma dose impressionante de ironia. Mas, antes, o narrador prepara sua audiência. Faz um prólogo, ensaiando o que vem a seguir. Equivale a dizer: “Vocês querem ouvir o que eu tenho para contar?”.

 

No caso de Kafka, aquela era uma carta que nunca foi enviada. E que o pai dele nunca leu. No meu caso, muito menos importante, eu só queria escrever um livro. E, como tenho o leitor sempre em mira, achei que era a melhor solução. E tem outra: adoro as palavras “prólogo” e “epílogo”. Tem a ver com minhas leituras infantis e adolescentes. Não são boas palavras?

 

GB: São, são boas palavras, sim. Então, qual a razão da utilização prólogo pela personagem-narradora, em Por que sou gorda, mamãe?

 

CM: Além de introduzir a história e chamar a atenção do leitor, é uma espécie de exercício ao qual tenho me dedicado. Saber, ainda que de forma tênue, quais as fronteiras entre realidade e ficção. No livro, a personagem-narradora conta, no prólogo, que engordou 22 quilos, mas que não sabia como. Sente-se ridícula e desorientada. E tem uma tristeza de dar pena. Ela se dispõe a percorrer sua própria história, imaginando que a dor também pesa e que as causas de seu sofrimento estão no passado. E, ao mesmo tempo, ela quer escrever um livro — porque é escritora. O que vem depois daí tenta mimetizar a memória: esfrangalhada, aos pedaços, iluminações súbitas. Há também passagens que voltam ao tempo imediato, ao momento em que a narrativa está sendo composta — que corresponde às verificações de peso e à vida diária da personagem. Claro que essa é, grosso modo, também a minha história. Engordei e estou em regime de emagrecimento; as visitas ao médico foram retiradas, em sua maioria, das consultas que eu fazia. E também queria escrever um livro. Mas o mais importante do prólogo é introduzir a pergunta que dá título ao livro. Uma pergunta que prenuncia outra, que será dada no epílogo. As perguntas, claro, nunca acabam. Mas há duas perguntas fundamentais no livro. Uma delas já se sabe. A outra está no final. Cabe ao leitor que me der a honra da leitura descobrir.

 

GB: “Este é o começo doloroso e persistente da nova etapa de minha vida. Que se inicia ali, um pouco adiante, no ponto final deste prólogo. Depois trato de purificar a memória em invenção. Mas só depois daquele ponto final. Porque meu ofício é exclusivamente escrever – o que significa erro em cima de erro –, há um livro a ser escrito. Usar-me como ficção: aí está a única forma de saber o que foi, porque preciso saber o que foi para o novo começo”, assim inicia-se o prólogo. E, mais adiante, “a ficção é cimento de unir as partes”.

 

A minha hipótese é a de que Por que sou gorda, mamãe? é também um livro sobre uma escritora que, afinal, assume o seu ofício de escritora na sua plenitude (o novo começo). Você compartilharia desta ideia? O que pensa sobre isso?    

 

CM: Explico: no final do ano retrasado, eu decidi abandonar a carreira de jornalista, recolhendo-me em casa para escrever. O que é, resumindo, uma pretensão e tanto num país como o nosso. Foi o momento de ultrapassar tudo o que veio antes e me focar naquilo que existia de mais meu, que era a possibilidade de continuar uma carreira literária que tinha dado certo até aquele momento. De qualquer forma, para mim, a ficção tem esse sentido, o de preencher buracos, de juntar os hiatos entre as faces do abismo. A ficção é um exercício de integridade — e essa não é só uma frase de efeito. A narradora e, por coincidência, eu também, precisávamos escrever um livro que marcasse uma nova etapa. A etapa de se dedicar integralmente a um ofício, a despeito das minigâncias e preocupações cotidianas — e a despeito das encrencas com a mãe. Será apenas mais uma etapa. Mas essencial. Para mim, Por que sou gorda, mamãe? divide minha vida. Ao menos por agora. Não sei o que virá a seguir. Mas é o mais importante, o mais fragmentado, o mais inteiro. Não me lembro de ter ficado tão obcecada dessa maneira com livro nenhum. E olha que eu sou obsessiva de carteirinha.

 

GB: Então, “Literatura” com ele maiúsculo, ou “literatura” com ele minúsculo?

 

CM: Houve uma fase da minha vida em que literatura era maiúscula. A canônica e sagrada. A dos clássicos, de Machado a Tolstoi. Mas como se muda, literatura passou a ser escrita, e lida, com os dois eles, minúsculo e maiúsculo. Se eu tinha de segmentar e achar uma taxonomia para aquilo que estava lendo, tudo ficava muito aborrecido. Literatura passou a ser literatura. O que é bom e agradável se escreve em todas as épocas, autor morto ou não. Também me sentia muito devedora dos clássicos. Não que não sejamos devedores de nosso legado, mas acho que podemos conviver em bases menos rígidas. Eu queria me desviar do papel de caudatária dos antepassados. Também queria escrever, produzir. Uma relação mais saudável e natural, sem reverenciar demais. Nós, nossos contemporâneos, temos esse direito. De fato, vejo que tomei a decisão certa. Sou admiradora de autores vivos, muitos deles mais jovens do que eu. Quanto a blogs e à literatura que circula na internet, acho bacana. Mas a maioria não me chama a atenção. Tudo com muita leviandade. Alguns autores escrevem para eles mesmos. Literatura deve ser lida por muitos. É esse o sentido no qual acredito.

 

GB: Literatura feminina? Literatura gay?

 

CM: Essa pergunta é um pouco complicada de responder. Embora a pergunta sempre surja, há variações na resposta. Minha crença é que se conforma num erro grande segmentar e rotular a literatura. O que seria literatura feminina, gay, judaica, negra, árabe — e o que mais se quiser? Literatura é literatura, ponto final. Eu entendo que há uma questão de gênero, isso sem falar de questões de autoria, de origem étnica, religiosa e geográfica. Mas são assuntos exteriores à literatura. Um fait divers com um edulcorante mais sofisticado, uma fofoca que circunda o tema principal. No entanto, tenho aceitado, assim como várias outras autoras, que existe, vamos dizer, uma dicção feminina. Não sei definir que tom seja este. No final, a gente vai descobrir o seguinte: existe a literatura boa e a ruim. Mas também esses conceitos variam de leitor a leitor. Eu, talvez de forma demasiado autocentrada, tento fazer aquilo que acho que é boa literatura. Aquilo que não se encaixa nesse padrão absolutamente pessoal de gosto-não gosto, não importando a mão que escreva, eu jogo fora e não perco mais meu tempo. Não posso satisfazer todo mundo. Tenho poucos leitores fiéis, uns três ou quatro, além de eu mesma. Juro que eu sou a leitora mais exigente de todos. E sempre estou esperando muito mais de minha escrita. Sempre.

 

GB: O “regionalismo” e o “judaísmo” são dois dos elementos que caracterizam a sua literatura. No entanto, Por que sou gorda, mamãe? parece ir além da caracterização regional e religiosa, na medida em que o cerne deste romance tem como ponto de apoio a transmissão geracional, seja ela a transmissão do amor parental, do ódio, de hábitos alimentares, de características familiares e de personalidade, dentre outras. Você compartilharia desta ideia? O que pensa sobre isto?

 

CM: Sim, eu compartilho do pensamento, embora relute um pouco em aceitar a ideia de “caracterização regional”. Isso comentamos depois. Tenho fé na ideia de que o autor nunca é inocente perante seus antecessores ou, muito menos, perante ele mesmo. Quero dizer que creio que a produção de qualquer autor está impregnada não só da tradição, como comentei, como também de tudo aquilo que compõe o acervo que faz ele ser ele. Amós Oz diz isso com mais graça, num trecho de seu recente De amor e trevas. Não saberia reproduzir aqui a reflexão do escritor, mas, em resumo, ele diz que tudo o que se escreve é autobiográfico. Tudo partiu da mão de um sujeito, da cabeça de um sujeito, da emoção de um sujeito. Com relação ao Por que sou gorda, mamãe?, grande parte do meu legado de vida está lá. Nesse sentido, é um livro autobiográfico em essência. E está lá, tens razão, não apenas como cenário, mas como parte integrante e basilar do conflito. Sempre tive o judaísmo e suas tradições muito presentes em minha vida e isso se espelha em minha produção, quer num papel secundário, quer coadjuvante. Agora, no entanto, para compor um problema narrativo, lancei mão descaradamente deste “legado geracional”, como dizes. A diáspora, para os judeus, tem esse sentido ambíguo, de perda e resgate de identidade, que é maravilhoso para a literatura. Essa necessidade de fartura, de lidar com a culpa desde o berço, de rir para controlar a própria vida, isso tudo eu vivi e vivo todos os dias. Não só eu. Todos aqueles que descendem de famílias emigradas para países do Novo Mundo — do Brasil à Austrália — sofrem na carne isso, uma melancolia da escassez e da nova cidadania. Claro, creio que os judeus sofrem um pouco mais. Quem tem uma mãe judia sabe do que eu estou falando. Mães judias, já disse, são parceiras de Deus na criação da vida.Vá lidar com um problema desses.

 

GB: Este parece ser, dentre os seus livros publicados, o que mais se debruça sobre o tema do desamor e da cegueira que o ódio promove. Esta leitura estaria correta? Encontrou muita dificuldade em escrever sobre o tema?  

 

CM: A própria escritura do livro demonstrou isso, como o ódio empana todo e qualquer afeto. E qualquer laivo de racionalidade. O ódio e seus derivados, como o ressentimento e a culpa, são capazes de travar a mão de um escritor. Quando deixei de ser a narradora do livro, livrei-me das muitas culpas que me acompanhavam. E livrei-me desse ressentimento de ser filha de uma mulher que entende que a maternidade é uma dádiva e uma dívida perpétua e impagável. Isso, o fato de um filho se sentir eternamente devedor gera um ódio fenomenal, que afeta mais quem sente do que aquele que é objeto do ódio. Isso me freava, não me deixava ir adiante. No entanto, eu sabia que isso era justamente o tema sobre o qual teria de escrever. Era muito bom para ser relegado a um plano pudico e íntimo. Gosto de escrever sujando as mãos. No entanto, para me preservar, tentei varrer o ódio para debaixo do tapete. Com isso, eu perdi de vista meu melhor assunto. Só me restava escrever sobre amenidades. Por isso a terapia foi fundamental. Consegui, num exercício dolorido, separar os ressentimentos que tenho com relação a minha mãe, valorizar o afeto e as boas coisas que ela me deu e dá. Tudo isso ficou num canto visível. Mas num canto apartado das minhas sessões de escrita. Minha personagem sofre esse drama, que, para ela, ainda é central. Além disso, ela também tem ódio do próprio corpo, da compleição disforme em que se encontra, de uma herança genética que tira dela a escolha e a faz gorda feito uma baleia. Ela odeia a comida que a engorda, mas ama o alimento que lhe dá prazer. Essas ambiguidades são ultrapassadas paulatinamente, grama a grama, garfada a garfada, capítulo a capítulo. Mas, ao final, acho que a personagem também consegue guardar o ódio num lugarzinho delimitado. Eu espero que fique lá.

 

GB: Ainda que pareça ser muito cedo para fazer esta pergunta, com um romance recém-saído do forno, há novos projetos em mente?

 

CM: Me sinto meio cansada. É como se meu cérebro tivesse virado uma passa de uva. Esse livro foi feito em tempo recorde para meus padrões: um ano e meio. E foi assim porque, caso contrário, eu tinha certeza de que arranjaria qualquer outra coisa para fazer, que me entupiria de compromissos. Larguei tudo, me entoquei em casa e escrevi, escrevi e escrevi. Agora, estou atendendo àquelas coisas que deixei de atender, o vazamento no banheiro, um dente quebrado, esse tipo de miudeza. Tempo de fazer mimos no marido, ver como andam meus bichos, minhas plantas, meus amigos. No entanto, uma ideia tem me perseguido. Uma ideia que nasceu durante a escrita da Gorda. Espero que não te incomodes. Mas tenho uma superstição quase infantil relacionada a revelar esse tipo de coisas. Quando o sentimento virar um plano de trabalho, quando o plano de trabalho começar a tomar forma, prometo que conto. Agora, tenho de me recompor. E há uma viagem para a Alemanha, para participar da Copa da Cultura, em Berlim. Vou até a Moldávia e à Romênia, lugares de onde vieram meus bisavôs. Também vou à Polônia e à Turquia. A passa de uva tem que virar um cérebro de novo. E tenho certeza de que na tranquilidade de uma viagem, uma história vai ganhar corpo.