Publicado no caderno Cultura – O Estado de S. Paulo – p. D5
16 de janeiro de 2010
Giovanna Bartucci
O que é a poesia para Jorge Luis Borges (1899-1986)? Uma paixão, um prazer, acima de tudo a poesia é.
Talvez por isso mesmo, tão logo começava a falar sobre poesia, aproximava-a à vida. De fato, para o escritor argentino, a vida é feita de poesia, e esta se encontra por toda parte, sempre à espreita. Ler ou “cometer versos”, como dizia, significava, então, passar à vida. O autor de O Outro, O Mesmo (1964), livro de poemas que ganhou nova edição pela Companhia das Letras, em 2010, considerava que a experiência da poesia é, a cada vez, única.
Dito de outra forma, tal experiência ocorre em todas as ocasiões em que um poema é lido, e sempre de maneira distinta daquela que teve lugar quando de sua primeira leitura.
Com certeza, não é fácil esquecer que Borges frequentemente reiterava a afirmação de que o que de mais importante lhe aconteceu na vida foi a biblioteca de seu pai. E com razão. “O fato central de minha vida foi a existência das palavras e a possibilidade de tecê-las em poesia”, declarou o escritor durante uma de suas Northon Lectures, proferidas na Universidade de Harvard, em 1968. Garantia também, como o fez em seu Um Ensaio Autobiográfico (1970), que havia chegado às coisas depois de ir aos livros, os livros tendo se tornado, então, ocasiões para poesia.
Assim, se esta equivale à vida e a vida à poesia, compreenderemos, sem dificuldade, porque O Outro, O Mesmo era o livro de poemas preferido de Borges. Uma compilação, o volume traz, como assinala o próprio autor no “prólogo”, os seus “hábitos”: “Buenos Aires, o culto aos antepassados, a germanística, a contradição entre o tempo que passa e a identidade que perdura, meu estupor diante do fato de que o tempo, nossa substância, possa ser partilhado”. Além de poemas que Borges muito apreciava: os longos e complexos “Outro Poema dos Dons” e “Poema Conjuntural”, “Junín”, e o belíssimo “Uma Rosa e Milton”. E, ainda, os conhecidos “Everness” e “Ewigkeit”.
Muito mais que seus “hábitos”, no entanto, o fato é que os temas fundadores da obra borgiana estão todos aqui: a ideia de que o universo é uma unidade total na qual a individualidade é mera ilusão, de que todo homem é também outro homem, ou também todos os homens, o duplo, espelhos e reflexos, o mundo como uma biblioteca infinita, a concepção da atividade de leitura como ato de escrever e de viver. Produzido para diferentes momentos e moods, a habilidade de Borges em criar universos extraordinários em sua ficção, utilizando-se de uma economia de estilo furtiva quase absoluta, também ficará evidente para o leitor de sua poesia.
Acima de tudo, O Outro, O Mesmo evidencia as paixões borgianas: por narrar uma história, pela metáfora e pelo enigma, pelo prazer contido nas palavras, em sua cadência e em sua música, pela condição (intencional) da poesia de levar a linguagem de volta às fontes. Com efeito, na medida em que para o escritor, “a raiz da linguagem é irracional e de caráter mágico”, o que a poesia quer é retomar esta antiga magia. Uma magia que permita ao leitor sentir a beleza de um poema, antes mesmo de começar a pensar em um sentido, como diria Borges.
Faça a experiência com os versos de “Ao Filho”, contido no volume: “Não sou eu quem te engendra. São os mortos./ São meu pai, o pai dele e os predecedentes;/ são os que um longo dédalo de amores/ traçaram desde Adão, e dos desertos/ de Caim e de Abel, em certa aurora/ tão antiga que já é mitologia,/ e chegam, sangue e âmago, a este dia/ do futuro, em que te engendro agora./ Sinto sua multidão. Somos nós dois/ e os dois, reunidos, somos tu e os próximos/ filhos que engendrarás. Os derradeiros/ e os do vermelho Adão. Sou esses outros,/ também. A eternidade está nas coisas/ do tempo, que são formas pressurosas”. É verdade, a essa altura, torna-se desnecessária qualquer interpretação ou construção de sentido. Aqui, com Borges, a poesia é. Apenas e completamente.
Vale observar ainda que o escritor chamava nossa atenção para o fato de que os textos “o escreviam”, em vez do contrário: “Eu vivo, deixo me viver, para que Borges possa tramar sua literatura e essa literatura me justifica”, narrava em seu conto “Borges e Eu” (1960). Afirmava também que era, essencialmente, um leitor e considerava o que havia lido muito mais importante do que o que havia escrito. Entendia que um poeta, um ficcionista ou ensaísta, não escreve o que quer, e sim o que é capaz de escrever. Contudo, se as palavras são símbolos para memórias partilhadas, como segredava o poeta, o que Borges fez foi aprofundar a paisagem de nossas memórias, e essa é a marca de um artista verdadeiramente grande.