Os jogos da subjetividade

Silviano Santiago

Silviano Santiago

Coletânea de ensaios de Giovanna Bartucci aproxima a literatura da psicanálise
Publicado no caderno IDEIAS – Jornal do Brasil – Págs. 1-2
24 de junho de 2006

Por Silviano Santiago – Escritor e crítico literário

Não é por casualidade ou coincidência temática que a literatura serve para mover os passos analíticos de Giovanna Bartucci. Na sua mais recente coletânea de ensaios, Fragilidade absoluta (Planeta, 2006, 240 págs.), as questões relativas ao indivíduo e ao ser, apesar de estarem prévia e cuidadosamente inseridas no contexto da psicanálise, entram em jogo com questões referentes, respectivamente, à história e à filosofia, graças à intermediação da literatura, tomando-se a esta, como veremos, o sentido amplo que está ganhando no terceiro milênio.

A literatura é o instrumental estético que organiza o jogo entre o “sujeito em permanente constituição” e a sociedade em movimento acelerado. Ela serve de apoio para que o discurso sobre o indivíduo extrapole os seus limites e abra lugar para uma reflexão filosófica e histórico-cultural de teor multidisciplinar. Segundo as palavras de Joel Birman, a psicanálise se avizinha hoje de “um discurso ético-estético-político”. A autora, segundo as suas próprias palavras, procura identificar “a presença de processos constitutivos do sujeito no bojo dos processos de cultura”.

Não é, portanto, por casualidade ou coincidência temática que a literatura ocupe lugar tão principesco quanto a teoria freudiana na nova coletânea de ensaios de Giovanna. A originalidade do trabalho dela advém do fato de que se vale da literatura, em particular do argentino Jorge Luis Borges (leia-se o ensaio “Entre o mesmo e o duplo, inscreve-se a alteridade”), para dar continuidade, com rigor e conhecimento de causa, às duas linhas fundadoras da psicanálise, onde as questões referentes à “constituição do sujeito” se extrapolam em determinados ensaios de Freud para a análise multidisciplinar, como em “Totem e tabu” ou “O mal-estar na cultura”.

Lembra Giovanna que, na modernidade, “os sujeitos são artífices do próprio destino”. E têm de o ser muito mais do que nos séculos 19 e 20 porque “se a coesão de nossa sociedade era mantida outrora pelo imaginário do progresso, ela o é hoje pelo imaginário da catástrofe” (Jean Baudrillard).

Não é, pois, por acaso que o ensaio de abertura do livro se chame “De um mal-estar na cultura ao paradoxo instituinte” e que, nele, Sófocles ou Borges abram espaço para que Freud lance a boa palavra aos historiadores Eric Hobsbawm, autor de Era dos extremos, e Jacob Gorender, autor de Combate nas trevas, ou ao sociólogo da cultura, Richard Sennett, autor de Autoridade. Tendo como referência o título de um filme de Joseph Losey, The go-between, a literatura entretece a palavra da amizade entre as disciplinas e entre os complexos universos nacionais e cosmopolitas.

Como pião, saliente-se a figura do leitor, ou seja, daquele que sempre mantém alerta a curiosidade intelectual. Afirma Giovanna: “Ao conjugar o não psicanalista e o psicanalista na figura do leitor, empenho-me em manter o rigor teórico com o qual me esforço por trabalhar”.

Antes de ser o objeto privilegiado, como na crítica literária propriamente dita, a literatura surge como inspiradora de um movimento do discurso que retira a analítica das questões propriamente disciplinares, para que se amplifique – pelas digressões multidisciplinares – a fala do indivíduo numa sociedade em crise, cujos valores se deterioram ao ritmo da televisão a cabo e da Internet. Assim é que, pelo viés literário, os passos discursivos de Giovanna extrapolam o plano da subjetividade, comum à teoria psicanalítica e às figuras retóricas da literatura (narrador, personagem e leitor), a fim de aclimatar questões de propriedade tanto da filosofia e da história mundial, quanto da história nacional e da sociologia da cultura.

Extremos da literatura

Tanto mais fascinante é o discurso analítico de Giovanna porque trabalha com os extremos atuais da literatura que, por sua vez, são mediatizados pelo cinema e a música popular. Falemos dos extremos da literatura. No livro estão devidamente individualizados pelo nome próprio os grandes escritores do Ocidente, os que Harold Bloom chamou de canônicos. Lá estão também – em igualdade de condição – os textos de “escritores” (perdoem as aspas) que se assemelham aos que se manifestam hoje através de relatos autobiográficos ou blogs. Refiro-me ao texto dos analisandos.

Leiam, por exemplo, esta passagem inspirada pelo discurso deles: “aqueles que, nascidos no pós-guerra, se encontram produtivos, temem por seus filhos e netos. Os que se encontram improdutivos tentam compreender o que deu ‘errado’, por meio de uma experiência de ressignificação de suas próprias vidas”. No relato singelo do vivido, no discurso avisado da experiência, Giovanna desentranha em concreto o tempo das catástrofes, prognosticado teoricamente por Baudrillard.

Da estética do blog não escapa a própria autora, já que no ensaio “Maria Madalena e Édipo complexo” ficcionaliza a história de Maria Madalena, aparentando-a a um “caso” freudiano, isto é, a determinado tipo de analisanda nossa contemporânea. Tal o faz com um intuito claro. Ela quer extrair da leitura da sua invenção os elementos necessários para a discussão de dois processos de substituição na metapsicologia freudiana. O primeiro processo foi enunciado por Elisabeth Roudinesco e diz que o paradigma da histeria, predominante no século 19, está sendo substituído pelo paradigma da depressão. O segundo foi enunciado por Joel Birman e afirma que o conceito de inconsciente, fundamental na teoria freudiana, teria hoje o seu lugar ocupado pela teoria das pulsões. O engodo literário (ou isca) tanto mais sentido faz porque sabemos de antemão que há dois traços de união prevalentes no discurso analítico de Giovanna, o da invenção poética e o do leitor.

Já o cinema, elemento mediador entre os extremos, comparece no ensaio “Almodóvar: o desejo como universo”, onde Giovanna efetua com grande eficiência explicações de texto bem ao estilo clássico dos professores franceses. Longas passagens do discurso dos personagens são citadas e minuciosamente analisadas. No filme, conta mais o texto do que a imagem, o que pareceria estranho a um cinéfilo ou cineclubista. Tal pareceria estranho se a autora não tivesse escrito um outro ensaio em que debate “a eficácia clínica do processo de leitura” (refiro-me em particular às duas partes finais do ensaio).

Da parte final do ensaio retiro as palavras que concluem esta resenha: “Não mais circunscrito à palavra escrita, a noção ampliada de texto permite, assim, inserir o crítico como ‘leitor’ de sua própria vida, ao julgar estar interpretando a palavra do outro. Nesse sentido, repensar a questão da prática interdisciplinar em termos de simultaneidade temporal, e não apenas da coexistência espacial entre ideias, parece representar um avanço…”. Glosando a autora, acrescente-se: Avancemos.