Publicado no caderno Sabático, O Estado de S. Paulo – p. S5
26 de fevereiro de 2011
Giovanna Bartucci
Como suportar, dia após dia, o convívio com o próprio pai moribundo? O que fazer? Como se comportar? O que dizer a um pai que já não fala e cuja única distração consiste em, deitado no sofá, observar, através da persiana entreaberta da sala, a demolição e a destruição de tudo ao seu redor? Ir ao colégio, nadar na piscina de casa – parecer, enfim, natural?
Irmã Morte (Record, 2011), romance do escritor, crítico e tradutor espanhol Justo Navarro, compõe um quadro desolador no qual um adolescente e sua irmã mais velha são deixados à própria sorte após acompanhar o aniquilamento do pai, vítima de longo e incurável câncer. Paralelamente, a família também tenta se adaptar à expansão imobiliária que desola o bairro onde os irmãos passaram a infância.
Confrontados, assim, à cruel realidade, a moça se prostitui, usando a casa como local de encontros com clientes; e o rapaz, sentado no sofá em que o pai passara seus últimos meses, se entrega às imagens da TV que, sem som, tecem histórias passíveis de aplacar o desamparo no qual está imerso. Será, então, por meio dos olhos adolescentes do narrador que teremos conhecimento de que a perda lhe é insuportável – a ponto de fazê-lo encontrar, nos amantes da irmã, as costas, a nuca, o pescoço, as mãos, o nariz, as sobrancelhas, a boca, a voz do pai. Para além do desejo de incorporação, o jovem busca provas de que aquele que se foi ainda vive, apenas para “reencontrá-lo alarmantemente dividido” entre os frequentadores da casa.
O que surpreenderá o leitor, contudo, será o fato de que as tentativas de unir o “corpo desmembrado do pai” se constituirão no veículo de acesso do rapaz à memória de sua infância. A realidade manipulada, negada, tem como objetivo, afinal, “materializar o pai”, já que “ninguém me convenceria de que estava morto, e por isso aguardava o seu retorno”. De maneira análoga, mesmo que a vizinhança pareça “um território em guerra, entre demolições e escavadoras de trincheiras”, também não será possível vender a casa, ou mesmo ter uma existência “normal”, tão irmanado que está à morte em vida.
Com efeito, não à toa, ao cortejar a narrativa borgiana por meio da representação delirante da intrincada relação entre real e ficcional, vivida pelo jovem, o que Navarro faz, de maneira pungente, é lembrar-nos que compreender ou dar significado ao mundo em que vivemos será o mesmo que estruturar a realidade de modo profundamente pessoal.