Em Força de Lei, Jaques Derrida reflete sobre relações entre direito e justiça, mas também sobre poder, autoridade e violência
Publicado no caderno Cultura – O Estado de São Paulo – Pág. D11
15 de abril de 2007
Giovanna Bartucci
Qual a função do texto filosófico derridiano? A que efeitos está sujeito o leitor de Jacques Derrida (1930-2004), filósofo francês que instituiu o “desconstrucionismo”? Inicialmente, vale lembrar que a filosofia desconstrutiva derridiana tem como objetivo refletir acerca da dependência da tradição do pensamento ocidental à lógica da identidade. Lógica esta que, nas palavras do filósofo inglês Bertrand Russel (1872-1970), compreende as seguintes características essênciais: a lei da identidade: “o que é é”; a lei da contradição: “nada pode ser e não ser”; e a lei do meio excluído: “tudo deve ser ou não ser”. A investigação derridiana sobre a natureza do edifício da metafísica ocidental (e sua base na lei da identidade), contudo, distingue a diferença do senso comum de uma diferença que não é reconduzida à ordem do mesmo e, por meio de um conceito, finda por receber uma identidade. Assim, a “différance derridiana” não implica uma identidade, e tampouco uma diferença entre duas identidades. Distinguindo-se de différence (com “e”), a criação vocabular de Derrida – différance (com “a”) – aponta, então, para um texto filosófico que revela uma tradição cheia de paradoxos e aporias lógicas, ou seja, “não-caminhos”.
“Em geral, a desconstrução se pratica segundo dois estilos que, no mais das vezes, ela enxerta um no outro. Um deles assume o aspecto demonstrativo e aparentemente não-histórico dos paradóxos lógico-formais. O outro, mais histórico ou mais anamnésico, parece proceder por leituras de textos, interpretações minuciosas e genealógicas”, explicita Derrida no recém-lançado Força de lei: o fundamento místico da autoridade (Martins Fontes, 146 páginas).
Contudo, se o método da desconstrução procede por meio da desmontagem e da decomposição dos elementos da escrita, dando visibilidade à “impureza” da escrita (e qualquer identidade), não é à toa que Derrida foi confrontado, em 1989, na Cardozo Law School, em Nova Iorque, e, em 1990, na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, à temática intitulada “A descontrução e a possibilidade de justiça”. Temática “desconstruída”, cujas elaborações agora temos acesso em língua portuguesa, a mesma foi desenvolvida em Do direito à justiça e Prenome de Benjamin, os dois textos que compõem Força de lei.
A desconstrução “assegura, permite, autoriza a possibilidade da justiça?” A desconstrução “torna possível a justiça ou um discurso consequente sobre a justiça e as condições de possibilidade de justiça?” Assim, é sobre esta questão – cuja forma em si anuncia uma suspeita – que o filósofo apoia as suas elaborações acerca do direito e da justiça. Porque é somente em aparência que a desconstrução não “endereça” (address, no original) o problema da justiça – uma vez que, para Derrida, a “desconstrução é justiça”.
Com efeito, ao alertar o leitor para o fato de que a conjunção “e” assinala deslizamentos equívocos entre direito e justiça, o filósofo antecipa o paradoxo que irá discutir ao longo do livro. “O direito não é a justiça”, dirá. “O direito é o elemento do cálculo, é justo que haja um direito, mas a justiça é incalculável, ela exige que se calcule o incalculável; e as experiências aporéticas (paradoxais, os “não-caminhos”) são experiências tão improváveis quanto necessárias da justiça, isto é, momentos em que a decisão entre o justo e o injusto nunca é garantida por uma regra”. Assim, “a justiça não estaria simplesmente a serviço de uma força ou de um poder social (…) que existiria fora dela ou antes dela, e ao qual ela deveria se submeter ou se ajustar, segundo a utilidade. Seu momento de fundação ou mesmo de instituição jamais é, aliás, um momento inscrito no tecido homogêneo de uma história, pois ele o rasga por uma decisão. A operação de fundar, inaugurar, justificar o direito, fazer a lei, consistiria num golpe de força, numa violência performativa e portanto interpretativa que, nela mesma, não é nem justa nem injusta”, uma vez que “o discurso encontra ali seu limite: nele mesmo, em seu próprio poder performativo”. É isto o que Derrida propõe chamar o “místico”. “Há ali um silêncio murado na estrutura violenta do ato fundador. Murado, emparedado, porque esse silêncio não é exterior à linguagem”.
A experiência da aporia teria, assim, alguma relação com o que o filósofo denomina místico. Se uma experiência é uma “travessia” – a experiência encontra sua passagem –, não sendo possível, então, a experiência plena da aporia – daquilo que não dá passagem –, a justiça seria a experiência daquilo que não podemos experimentar. Assim, “se a justiça não é necessariamente o direito ou a lei, ela só pode tornar-se justiça, por direito ou em direito, quando detém a força, ou antes quando recorre à força desde seu primeiro instante, sua primeira palavra. (…) A necessidade da força está pois implicada no justo da justiça”.
Claro, não podemos nos esquecer que se trata sempre da força diferencial, da diferença como diferença de força, da relação entre a força e a forma, da força como différance, e é nessa medida que função e efeito do texto derridiano são singulares. Se, de fato, a preocupação do filósofo foi a de gerar efeitos de maneira que o terreno filosófico continue a ser um lugar de criatividade e invenção, a experiência do texto derridiano é a de uma permanente (re)fundação, tornando Força de lei leitura indispensável.