O empório dos sentidos

Arte

Publicado em Percurso. Revista de Psicanálise – Ano XVII – nº 33 – Págs. 173-174
Segundo semestre de 2004

Por Oscar Angel Cesarotto
Psicanalista e Professor de Comunicação e Semiótica – PUC-SP

 

Nós, humanos, só desejamos porque somos humanos. Não com o cérebro, nem com a alma, mas com o inconsciente. E tampouco a partir do nada, à medida que algo, seja lá o que for, desperta a nossa curiosidade, mother of invention.

 

A arte, por exemplo. Para que serve? Alguma outra utilidade, além do frufru da fruição frutífera que suas manifestações provocam? São estas as que fazem os seus autores, e não o contrário; e o que antes não havia na natureza agora existe na cultura. Como deuses no momento criativo, os operários da matéria, das formas e das cores moldam mundos com suas mãos, gestos e frases. Para tanto, o verbo se faz objeto direto, num gênesis novinho em folha (de parreira).

 

Adão & Eva foram os primeiros artistas performáticos. Naquela época, ainda não havia umbigo. Eles o trançaram, e foi a primeira obra de arte exclusivamente humana. Um nó, um laço social.

 

Muitos nós, todos nóis. Na amarração das experiências vitais, os afetos nos afetam, as palavras nos dizem respeito, as imagens nos seduzem, e nunca ficaremos indiferentes perante o desejo alheio.

 

Pois bem: arte é isso.

 

***

 

Das Ding, der Dong: o carteiro sempre chama duas vezes, a primeira como inscrição, e a segunda como sintoma. A linguagem foi a morte da coisa, e o velório acabou numa balbúrdia, porque Babel era um bordel, e a confusão de línguas globalizou-se logo mais. Os destinos pulsionais já eram legião, e ficaram mais complexos. Como dissera Manuel de Barros, “antes era pior, mas depois foi piorando…”.

 

Isto posto, sejamos sérios. A epistemologia freudiana dispensa gincanas. Nem o inconsciente nem a pulsão poderiam ser mais fundamentais, um ou outra. Estes conceitos seriam inconsistentes sem a pertinência à teoria da qual fazem parte. Eles são topologicamente xifópagos. Todavia, aquém e além de sua formalização, a clínica comprova sua imbricação na vida cotidiana.

 

Não deixa de ser irônica a ausência de um artigo sobre a sublimação na Metapsicologia. Nunca foi escrito? Redigido, e depois engavetado? Talvez queimado? Perdido no baú de Ferenczi? Aguardando vir a lume, por alguma disposição testamentária, nos arquivos oficiais? Chi lo sa? Sua falta é instigante e convidativa, pois obriga os psicanalistas a produzir saber e preencher lacunas. Os artistas, por sua vez, continuam na deles.

 

Daria para imaginar um escrito de Freud sobre o impressionismo alemão e a arte degenerada? Um comentário sobre M – O vampiro de Düsseldorf, ou um diagnóstico do Dr. Caligari? E Greta Garbo, não seria analisável? No entanto, apenas sabemos que ele detestava o cinema, e esquivava com prudência o surrealismo. Teria ouvido falar de Duchamp? Pelo menos de Egon Schiele, seu vizinho? E, mesmo apreciando a boa literatura, não parece que tenha lido Sacher-Masoch, best-seller na língua alemã. O que fazer num caso assim?

 

Nada como arregaçar as mangas, pondo as ditas cujas para fora. Res non verba, e liber liberat. Então, demos as boas-vindas a Psicanálise, arte e estéticas de subjetivação, organizado por Giovanna Bartucci. A coletânea inclui uma série de excelentes trabalhos, bastante diversificada, alternando teorizações abstratas com indicações concretas do campo das artes plásticas, da escritura e das ciências do corpo. Este conjunto, longe de apontar para uma totalidade impossível, funciona como usina de ideias profícuas. O artifício dos fogos intelectuais ilumina o horizonte por um instante fugaz, vislumbrando algumas vicissitudes e configurações. Assim, formações e produções da outra cena ganham legitimidade e visibilidade a céu aberto.

 

A leitura sequencial de três artigos do livro aponta uma linha mestra de fuga. Pelo viés da simbolização das pulsões, atos se tornam formas e curam o corpo do artista. A criação contemporânea questiona o silêncio do espectador, no limiar da banalização do mal. No diálogo entre Edson Luis André de Souza, João A. Frayze-Pereira e Suely Rolnik, as táticas, análises e estratégias de situação permitem estabelecer novas topografias de referência. Definindo o estatuto do sujeito pelo seu estilo, a figura de Lygia Clark pode ser emblemática: vida e obra, corpo e espírito, atitude e sublime ação.

 

O mérito destes textos, na extensão da reflexão freudiana, fica maior no desafio de perscrutar as produções atuais. As artes do século XX e a psicanálise foram simultâneas e, embora a segunda permeasse a primeira de forma mais explícita, a recíproca também foi verdadeira. Ambas, no Zeitgeist da modernidade, tiveram um encontro marcado, e uma escolha forçada: independência ou morte. Traduzido para o “lacanês”, separação ou alienação. Em outras palavras, a subversão do sujeito, e a dialética do ser-no-mundo.

 

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Subjetivação e subjetividade são noções frágeis que requerem constante aprimoramento. Esta última pode ser descrita como a consciência histórica que uma época tem de si própria, sem ser plenamente histórica, nem por completo consciente. A subjetivação, por sua vez, aponta para a resultante singular de cada um, coadunando a tríplice condição de falantes, sexuados e mortais. Estas dimensões ontológicas determinam nosso psiquismo, e pagamos com sintomas o preço de ser gente.

 

Nos dias de hoje, viver vai ficando difícil. O sujeito se constitui no Outro, que parece não existir mais. Será? A pós-modernidade, eclipsando muitas das convicções prévias, trouxe um consequente desencanto. E a expansão planetária do capital, no deslocamento veloz da informática, determinou uma temporalidade fictícia, um presente virtual e infinito. Faz tempo que o discurso da ciência deu passo à tecnologia, sua validação pragmática. Atravessados pelas mídias, nunca como dantes interligados, carecemos, no entanto, de algum relato de emancipação e prosperidade suficientemente convincente para fornecer um ideal à altura do mal-estar da cultura.

 

Os objetos de consumo se introduzem nos circuitos libidinais para manobrar as pulsões, em particular a escópica e a invocante, atingindo fantasias e fantasmas. A sociedade do espetáculo, visando a satisfações imaginárias, promove uma insatisfação ao mesmo tempo histérica e existencial. A repetição dos substitutivos conduz ao autoerotismo “massivo”, ou melhor, a retroação autista da categoria amorfa de indivíduo. No extremo, viceja a pretensão de se chegar a ser indiviso, suturando e saturando a divisão subjetiva com uma mais-valia de gozo técnico. Assim caminha a humanidade.

 

Por estas e outras, a subjetivação não é mister garantido, exigindo éticas e estéticas. O desejo decidido se comprova no ato, pelas suas consequências. E quando dizer é fazer, o produzido incide na sina do locutor e feitor. A obra, enquanto feitio e dejeto, pode ser qualquer coisa, sendo elevada a dignidade do objeto, isto é, sublimada. Porém, sem reconhecimento, nada feito. O feedback da alteridade continua imprescindível, chamando a responsabilidade, e ecoando um Che vuoi? Qual é a sua?

 

Tirante a alienação, resta a maiêutica: o parto simbólico do sujeito, por conta e risco, sob transferência.