O ego de Clarice

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Ao buscar a “autobiografia involuntária” da escritora na sua obra, livro desconsidera a ilusão que se funde tanto à realidade quanto à ficção

Publicado na revista BRAVO! – Ano 5 – nº 57- Pág. 60
Junho de 2002

Giovanna Bartucci

Determinada a ler a vida de Clarice Lispector por meio de sua obra, desvelando a “intenção autobiográfica (não planejada) percorrendo cada um de seus escritos”, Lícia Manzo acrescenta o ensaio Era uma vez: Eu – A não-ficção na obra de Clarice Lispector (Editora UFJF, 2002, 240 págs.), à “sua folha de serviços prestados à obra” da escritora. Manzo tem como objetivo comprovar a tese de que “Clarice esboça, através de sua literatura, um percurso irreversível em direção à primeira pessoa, ao texto confessional, ao ‘eu’, (…) acabando por coverter-se no personagem central de seus escritos”. A seleção dos textos de Clarice obedece à análise que privilegia: àqueles que mais se prestam a uma leitura autobiográfica somam-se os depoimentos do filho, da irmã da escritora, dos amigos Olga Borelli, Affonso Romano de Sant’Anna, entre outros, e do ex-psicanalista da escritora.

“Em que medida podemos esperar extrair a verdade de uma autobiografia ou um diário, e a ficção de um conto, novela ou romance?”, é a pergunta que orienta a leitura de Manzo. A resposta vem ao tratar de Perto do Coração Selvagem (1943), primeiro romance da escritora: a obra “nos serve (…) como um caleidoscópio… É o autor que se funde aos personagens, o personagem que se sobrepõe ao autor, e assim por diante”. Tal procedimento, no entanto, levanta questões importantes: caso consideremos que será a evidência da realidade psíquica como ficção – como propõe Manzo, afinal – que terá efeito de verdade sobre leitor e autor, explicitando sua “intenção autobiográfica”, tal residiria na desconstrução do lugar ocupado pelo sujeito no texto, configurado pelas imagens do autor e do escritor, por sua encenação como narrador, personagem e leitor. Manzo, no entanto, entende que é da “incapacidade (de Clarice) de sair de dentro de si mesma”, “dessa surdez com relação ao outro que se constrói sua voz radical, independente, selvagem, absoluta”, “em que texto e experiência pessoal pareceriam amalgamados…”

Assim, ainda que a força do imaginário que impulsiona a escrita seja resultante do processo ambivalente do escritor se valer de uma relação próxima e distante com a realidade, como que numa espiral de um movimento de identificação e tomada de distância e determinada a construir um “eu” para Clarice Lispector, Manzo parece desconhecer que o “eu” é, afinal, o lugar da ilusão. Clarice, no entanto, o soube sempre: talvez por isso escrevera em carta a Lúcio Cardoso, em 1940, “é que eu não sou senão um estado potencial, sentindo que há em mim água fresca, mas sem descobrir onde é sua fonte”.