Exposição no Masp põe em discussão a competência clínica da psicanálise
Publicado no caderno Cultura – Estado de S. Paulo – Pág. D7
8 de outubro de 2000
Giovanna Bartucci
A maior mostra sobre Sigmund Freud, o pai da psicanálise, intitulada “Freud: Cultura & Conflito”, organizada pela Biblioteca do Congresso, em Washington, a ser inaugurada em 26 de setembro, no Museu de Arte de São Paulo (MASP), não foi a única a gerar debates na imprensa internacional, a partir do momento mesmo em que foi anunciada. Atacada por não conter opiniões de críticos ou opositores da obra freudiana, esta é apenas a ponta do iceberg. Poderíamos dizer que tudo aquilo que diz respeito a psicanálise foi, e ainda é, amado e odiado.
No entanto, embora tendo se incorporado tranquilamente ao cenário brasileiro, já há alguns anos, vemos alardeadas pela mídia questões relativas à própria sobrevivência da psicanálise. O que antes restringia-se aos EUA e à Europa, chega à América Latina. Entretanto, mais importante do que isso, o que vemos é a própria competência clínica da psicanálise colocada em questão. Assim, enquanto alguns psicanalistas entendem que a crise, compreendida, aqui, como certo mal-estar na e da psicanálise na atualidade, se relaciona a uma oferta terapêutica que trouxe consigo a superpromoção da própria formação em psicanálise, outros acreditam que se tornou necessário incorporar, ao discurso psicanalítico, os dispositivos terapêuticos e referenciais teóricos do discurso psiquiátrico vigente. Assim, as depressões, as toxicomanias e diferentes síndromes, campo clínico preferencial da nosografia psiquiátrica da atualidade, pediriam intervenções pontuais, centradas nos psicofármacos. Sim, é verdade, para alguns esta incorporação descaracterizaria, por fim, o discurso psicanalítico.
Não seria prudente, então, pensar que, na comemoração de seu centenário, é a própria psicanálise que se encontra pronta para deitar-se no divã freudiano? Isto posto, o que será que escutaríamos? Vejamos: o que escutamos, cotidianamente, diz respeito a uma reclamação de base – a psicanálise se teria tornado inoperante no contexto histórico da atualidade. E de que contexto se trata? Na verdade, não será difícil constatar que a fragmentação da subjetividade ocupa posição fundamental na configuração do social constituída na atualidade.
Podemos concordar, para além da própria experiência clínica, que o que está em pauta é a percepção de uma certa configuração subjetiva na qual o autocentramento se conjuga ao valor da exterioridade: os destinos do desejo assumem, assim, uma direção autocentrada e exibicionista, os vínculos tendem a ser light, não dando lugar a experiências de perda que configurem luto, e a consequente constatação da incompletude do sujeito. Assim, ter, aqui, é ser. Ter objetos, usufruí-los, proporcionaria a satisfação almejada, como também situaria o sujeito numa determinada configuração social e definição identitária. É verdade, nesta prática de consumo descartável, espera-se tudo do objeto e, consequentemente, nada do sujeito.
Alteridade e temporalidade
No entanto, nesta configuração, dificilmente a psicanálise poderia ocupar o lugar do “objeto-satisfação-garantida-ou-seu-dinheiro-de-volta”. Se o ideal vigente, no que concerne a temporalidade, valoriza o predomínio de um presente fugaz e eterno, a ausência de passado e memória, é compreensível que as experiências de perda e o reconhecimento da incompletude do sujeito, as quais têm, efetivamente, a possibilidade de abrir caminho para a subjetivação permanente, para a alteridade e temporalidade e, consequentemente, para um futuro que tenha sentido, não tenham lugar.
Mas, a verdade é que enquanto constatamos certo mal-estar na e da psicanálise na atualidade, enquanto, por exemplo, o roteiro clássico do Édipo – a criança que deseja o pai do sexo oposto e se identifica com aquele de seu próprio sexo – entra em crise, nunca se revelou tão verdadeira uma das descobertas mais fundamentais da psicanálise, o caráter não adaptativo da sexualidade humana. É nessa medida que as questões relativas a intensidade e excesso pulsional são fundamentais. Não só se apresentam como características marcantes dos sofrimentos na atualidade, mas tomado pela intensidade e pelo excesso, ao sujeito só lhe resta realizar um trabalho de ligação, que constitua destinos possíveis, ordenando circuitos pulsionais e inscrevendo a pulsão no registro da simbolização.
É neste contexto que o conceito de sublimação tem importância fundamental. Recordemos que por sublimação entende-se a capacidade do sujeito de investir em atividades artísticas, intelectuais, ideológicas, científicas, atividades denominadas por Freud de “atividades superiores”, uma vez que, desta forma, laços sociais são estabelecidos e fortalecidos, empregando energias que, do contrário, inviabilizariam a vida em sociedade. Assim, a sublimação seria o que permitiria a constituição de uma dialética da alteridade por meio da inscrição da pulsão no campo da cultura, sendo a arte, então, uma modalidade de sublimação às pulsões.
Assim, se o Freud de 1908 compreende a obra de arte como um substituto do que foi o brincar infantil, uma vez que aproxima o artista, aqui o escritor criativo, da criança que ao brincar cria um mundo próprio reajustando seus elementos de uma forma que lhe agrade, mantendo, com isso, uma nítida separação entre seu mundo de fantasia e a realidade, será a partir das transformações sofridas pelo conceito freudiano de sublimação que tal formulação é passível de alteração. A partir da publicação de “Além do princípio do prazer”, ensaio de 1920 que termina por estabelecer o já tão conhecido dualismo entre pulsões de vida e pulsões de morte, será essa mesma pulsão de morte, uma vez que não se articula no registro da linguagem, que imporá ao sujeito a necessidade de inscrição no registro da simbolização.
Rupturas
Assim, se em sua versão inicial a sublimação é uma experiência de espiritualização, de ascese, por meio da qual a subjetividade é purificada de seu erotismo perturbador, em sua versão posterior, de 1932, será a mudança de objeto da pulsão o atributo fundamental na reordenação do circuito pulsional. Nessa medida, se, em face da premência e necessidade em produzir novos objetos para os circuitos pulsionais, o sujeito realiza rupturas no campo de objetos e símbolos, na visão de mundo constituída, será exatamente isto que permitirá ao sujeito constituir sua própria realidade de acordo com as leis que eventualmente conheça. Assim, compreender ou dar significado ao mundo em que vivemos será o mesmo que estruturar a realidade de um modo pessoal e estilizado.
Por certo, muitos não concordarão, mas não me parece que o psicanalista seja artista, tampouco o artista é psicanalista (e por que não?), mas ambos compartilham de algo que, por hora, entendemos como um “lugar”. Assim, a experiência psicanalítica é, também, um lugar que pressupõe necessariamente um outro que escute, que interprete, que silencie; um outro que, para além de “suposto-saber”, seja ele mesmo este lugar, encarne este lugar, para que no momento que nele, lugar, adentremos, deixe ele mesmo de ser este corpo, para estar este lugar. O jogo de palavras não é artifício retórico, mas a tentativa de recolher, dar forma e instaurar um sentido para este tempo, que para além (ou aquém) da linguagem, é ele mesmo um tempo necessário. Um tempo que permite a emergência de um sujeito a partir deste corte, desta fenda, deste rombo, desta cratera, desta violência amorosa e necessária que nós humanos, por isso mesmo, mui educadamente denominamos falta. Assim é que tanto a experiência psicanalítica, concebida aqui como “lugar psíquico de constituição de subjetividade” – fundamentalmente para aqueles sujeitos cujos destinos como sujeitos será sempre o de um projeto inacabado, produzindo-se de maneira interminável –, quanto a arte, encontram na inscrição da pulsão no registro da simbolização e sua reordenação do circuito pulsional uma economia outra que possibilite o trabalho de criação, de produção de sentido e de ligação.