Publicado no Caderno 2 – O Estado de S. Paulo – Pág. C1
28 de julho de 2014
Giovanna Bartucci
Uma das características da literatura da jovem escritora gaúcha Luisa Geisler é o fato de a sua ficção bordejar permanentemente a experiência de suspensão – vivida pelo leitor seja por meio da temática abordada, seja por meio das construções de linguagem ensaiadas em suas obras.
Seus Contos de mentira (Record, 2011), livro de estreia da autora, são recortes pontuais de vidas atropeladas por um mundo em movimento acelerado. Narrativas sem início, meio ou fim retratam personagens confrontados a um cotidiano sem sentido, todos como que a testar “a possibilidade da possibilidade” do momento em questão. E, em Quiçá (Record, 2012), seu primeiro romance, a experiência de suspensão é promovida por meio do paradoxo que se instaura no encontro entre o fluxo narrativo de imagens característico da linguagem cinematográfica e a escrita literária.
Mas é em Luzes de emergência se acenderão automaticamente (Alfaguara, 296 páginas, 2014), seu segundo romance recém-publicado, que Luisa parece querer levar esta experiência ao limite. Aqui, o “quiçá”, o estado de suspensão, é o próprio tema do livro, cuja ação narrativa se dá em Canoas, cidade pertencente à região metropolitana de Porto Alegre, e que funciona como metáfora para os percalços sofridos por seu protagonista. Mais uma vez, será o uso da linguagem coloquial contemporânea da classe média urbana – agora explicitamente regional –, que surge do bojo da cultura pop, que lança luz sobre as experiências subjetivantes das novas gerações.
Henrique, jovem canoense, tem um dia a dia tranquilo – mora com os pais, estuda, namora e trabalha em uma loja de conveniência de um posto de gasolina – até que seu melhor amigo tem um acidente e mergulha em coma profundo. Ike passa, então, a conversar com Gabriel sobre o que acontece a sua volta – para “atualizá-lo” – por meio de cartas que lhe escreve. De modo que escreve “quando tem que esperar alguma coisa acontecer”, quando algo lhe incomoda – “fazer o que se quer é uma ideia que me incomoda bastante, daí eu fico escrevendo” –, quando as cartas lhe dão a possibilidade de “reler e repensar”. Uma questão vai se impondo vagarosamente, contudo, e a escrita diária – tentativa de reprodução do seu “estar cotidiano com Gabriel”, expresso por meio de “parênteses-pensamentos-loopings” infindáveis uns dentro dos outros – passa a ser um dos instrumentos por meio dos quais suportar a ausência de sua “alma gêmea”. Como ser “Ike sem Gabriel” – “o satélite sem a cidade”?
Com efeito, tal como Canoas – cidade que tomou corpo em torno de uma estação da linha de trem que ligava São Leopoldo à Porto Alegre, e na qual duas rodovias federais se encontram, mas “cada uma vai para um lado” –, o rapaz sofre com o “complexo de cidade-satélite”. Como canoense, também sofre com a “síndrome de cachorro de rua” – revelada na pergunta do que é ser habitante de uma cidade cujo nome remete à construção de embarcações, mas tem como símbolo um avião. Assim, vivendo em um estado de suspensão permanente, à medida que aguarda Gabriel “acordar”, Henrique sai em busca de memórias compartilhadas que resignifiquem suas experiências passadas e deem sentido ao que lhe acontece. Desse modo, o jovem é, lentamente, arrancado da adolescência e tragado pela vida adulta.
É importante registrar, contudo: o maior mérito de Luzes de emergência se acenderão automaticamente está depositado na tentativa da jovem Luisa em recolher, reproduzir e retratar, por meio da escrita ficcional, a experiência avassaladora – e muitas vezes impossível de ser realizada – que é o de fazer o luto por alguém que também é si mesmo.