Autora búlgara radicada na França discute questões de terapia e existência
Publicado no caderno Cultura – O Estado de São Paulo – Pág. D5
08 de junho de 2003
Giovanna Bartucci
De fato, Julia Kristeva é uma das mais brilhantes e respeitadas intelectuais da atualidade. Nascida em Sófia, Bulgária, em 1941, Kristeva reside em Paris desde 1965, quando emigrou para a França para realizar seu doutoramento. Psicanalista, professora de linguística na Universidade de Paris VII e romancista, com mais de 25 livros publicados, tem sua obra traduzida para mais de 10 idiomas. Seu pensamento, oriundo do diálogo entre diversas disciplinas, tais como a teoria literária, a linguística, a semiótica, a filosofia e a psicanálise, tem na crítica da noção de representação seu alimento constante. Dividido em duas partes – “A Clínica” e “A História” –, os quatorze ensaios que compõem As novas doenças da alma, lançado pela Rocco, é um dos melhores exemplos disto.
Ao refletir acerca da constituição da subjetividade na contemporaneidade, os ensaios que compõem “A Clínica”, majoritariamente escritos no início da década de 1990, pretendem responder a uma indagação básica: “Confrontada aos neurolépticos, à aeróbica e ao massacre da mídia, a alma ainda existe?” “Que tipo de representações, que diversidades de lógicas a constituem?”, indaga-se Julia. Com efeito, ainda que as descobertas das ciências, fundamentalmente da biologia e da neurobiologia, possam configurar a morte da alma, ao considerar os desafios com os quais se confronta a psicanálise contemporânea, “o assalto das neurociências” não destrói a psicanálise mas nos convida a reatualizar a noção freudiana de pulsão. É nessa medida que Julia não poupa esforços na tentativa de responder de que é feita uma alma. E sustenta que, se a psicanálise não possui necessariamente as respostas, é a única a procurá-las. É aqui, então, que o trabalho da autora se destaca.
Sem jamais se furtar à tentativa de pensar o impensável, de analisar o não-analisável, de nomear o inominável, Julia não se intimida. Constata que o homem moderno está perdendo a sua alma mas não se dá conta disso. Assim, por trás de atitudes “neuróticas”, “logo transparecem ‘doenças da alma’ que evocam, sem com ela se confundirem, as impossibilidades dos psicóticos de simbolizarem”. É nessa medida que a autora constata que há, no que se refere aos “novos analisandos” – que frequentemente se parecem aos “analisandos clássicos” –, um denominador comum: a dificuldade de representar.
Se se trata de uma mudança histórica dos analisandos ou de uma mudança na escuta dos analistas, cujas interpretações de sintomatologias antes negligenciadas, teria se aperfeiçoado, a autora observa que “se um analista não descobre, em cada um de seus pacientes, uma ‘nova doença da alma’, é porque não os escuta em sua verdadeira singularidade”. E quando as palavras nos faltam, quando a linguagem, instrumento por excelência do trabalho analítico, se mostra insuficiente? E quando as palavras faltam também à eles, nossos analisandos? Com efeito, ainda que o “fechamento da palavra” dos analisandos possa vir a ser considerado como indício da impossibilidade de tratamento, na medida em que a aparente condição de elaboração pode ser indicativa de um discurso artificial sem qualquer influência sobre os afetos e as pulsões, a autora observa que o que tais analisandos pedem ao analista é a constituição de um novo aparelho psíquico. Para Julia, no entanto, a elaboração deste aparelho psíquico passará por uma revalorização da imagem no seio da transferência, antes de abrir-se para a linguagem do desejo inconsciente.
Assim é que, ainda que a maioria dos ensaios que compõem “A História”, segunda parte do volume, pertençam a década de 1980, nem por isso a sua produção teórica, no que se refere às interações entre a semiologia – a ciência geral dos signos que estuda fenômenos culturais como se fossem sistemas de significação – e as teorias sobre linguagem, com produtos culturais como a Bíblia e as obras de James Joyce e Dostoievsky, encontra-se distanciada de sua produção teórico-clínica, condensada na primeira parte do volume. O fato é que tais elaborações encontram na distinção que Julia faz entre o semiótico (aquilo que é pré-linguagem) e o simbólico (signos e gramática), enquanto duas modalidades do processo de significância, sua sustentação. A autora chama de “simbólico” o exercício do discurso segundo as regras lógicas e gramaticais da interlocução, e de “imaginário” a representação de estratégias de identificação, introjeção e projeção, a partir das quais o sujeito advém. No entanto, ao distinguir entre o sentido pulsional e afetivo ordenado segundo vetores sensoriais diferentes da linguagem como, por exemplo, o som (melodia, ritmo), a cor, o odor, e a significação linguística que se realiza nos signos linguísticos e em seu ordenamento sintático-lógico, a atenção dada por Julia à sensorialidade tátil, escópica, de observação e de examinação, favorece a elaboração pulsional, antes recalcada ou sublimada. Assim é que a interpretação – e a construção – leva os analisandos à etapa posterior do desenvolvimento psíquico, a redescoberta e reconstrução do Édipo.
Como bem explicita Julia, com tais analisandos, parte fundamental do trabalho analítico se constitui menos como um trabalho de anamnese do que de reconstrução dos “componentes feridos ou não aparecidos do sujeito”, antes de ser uma dissolução, uma análise deles. Aqui temos Julia em sua melhor forma: “Sem repetir a curva melódica nem as marcas sintáticas da interrogação, a interpretação analítica adota a postura psíquica de uma questão. Eu creio saber, mas renuncio e lhes passo a palavra: saibam, digam, mintam, pensem”. Com efeito, será por meio de sua “teorização flutuante” que o analista irá perguntar-se de que forma tais analisandos “significam” – uma vez que no que diz respeito às “paixões não admitidas na palavra”, será mesmo “à força de lidar consigo mesmo (analista) na escuta do outro até os abismos da paixão, que esta palavra pode fazer-se carne”.