Jogo de espelhos

Literatura

A criação artística segundo a psicanálise. Sobre Psicanálise, literatura e estéticas de subjetivação. Organização de Giovanna Bartucci

Publicado no Jornal de Resenhas – Folha de S.Paulo – Pág. 5
10 de novembro de 2001

Por André Medina Carone
Mestre em Filosofia da Psicanálise

 

Um dos principais legados da obra de Freud foi certamente a considerável ampliação do campo dos atos psíquicos e a conquista, para o terreno da psicologia, de fenômenos que antes não lhe eram atribuídos. Integram esse novo campo não apenas os sonhos, os atos falhos, a frase de espírito ou um vasto repertório de sintomas neuróticos, mas também o ato da criação artística; e poderíamos afirmar que a descoberta desse novo continente psicológico foi acompanhada por um movimento de aproximação rumo a outras disciplinas. Desde seu surgimento e expansão, a psicanálise projetou sua sombra sobre a antropologia, a sociologia e a biologia, entre tantas outras disciplinas, e sustentou um laço ambivalente e íntimo com a estética.

 

É acerca desta ambivalência e intimidade que parecem discorrer os colaboradores dos presentes volumes. A ambivalência merece aqui ser compreendida como uma capacidade para adotar um duplo ponto de vista que, no entanto, não chega a ser ambíguo: a obra de arte pode ser tomada como um ato psíquico – ou, então, se assim se quiser, um sintoma – dotado de sentido, que revela ou ilustra as leis que regem o inconsciente; poderia ainda ser reveladora de teses e conteúdos que a própria psicanálise se empenha em trazer à luz por vias diversas.

 

Se em sua investigação a respeito da Gradiva, de Jensen, Freud concedeu à obra de arte a condição de objeto da decifração psicanalítica, em um ensaio como Das Unheimliche (“O Inquietante”) a literatura parece estar um passo adiante da psicanálise – “como se, além do fato de se constituir como objeto de estudo da psicanálise, a ficção possuísse também o poder de assombrá-la”, como escreve um dos autores do volume dedicado à literatura.

 

Perspectivas múltiplas 

A intimidade entre estética e psicanálise está presente no fato de que em boa parte desses estudos nem sempre se identifica com facilidade a perspectiva adotada pelos autores: alguns pendem mais para a literatura, o cinema ou a crítica literária, outros para esta ou aquela abordagem psicanalítica. A própria expressão “estéticas de subjetivação” talvez descreva esse duplo circuito que nos orienta entre os dois territórios: com ela podemos fazer referência tanto aos trajetos pelos quais a obra de arte traz à luz o que se passa na subjetividade quanto à forma com que esta encontra seu reflexo na criação artística.

 

Diante desse quadro e do amplo leque das investigações de diferentes autores – um terceiro volume ainda inédito, intitulado Psicanálise, arte e estéticas de subjetivação, completa a coleção –, é necessário que se faça aqui um recorte para ilustrar o laço íntimo e ambivalente que aproxima estética e psicanálise e a dupla perspectiva que parece animar o espírito da coleção, que conta com a colaboração de cineastas, psicanalistas, críticos literários e escritores.

 

O estudo de Noemi Moritz Kon sobre “O Gato Preto”, de Edgar A. Poe, é um bom exemplo de como se pode evitar a armadilha da “aplicação” do método investigativo da psicanálise a uma obra literária e criar para ambas um inquietante jogo de luz e sombra. Tomando como ponto de partida o contexto da literatura fantástica e os dilemas que ali são colocados – a intervenção do sobrenatural, fatos que contestam a percepção comum, a fantasmagoria –, a autora parte de uma tese de Todorov e aponta o herói da literatura fantástica como um antepassado direto do “homem psicanalítico”. Na literatura fantástica, aquilo que se toma por ilusório ou fantasmagórico está presente como um corpo estranho, cuja voz permanece exterior ao sujeito e não se cala: frente a ela, esse herói literário só pode responder com a ação.

 

Esse “homem sem espessura”, capaz de aperceber-se do extraordinário apenas em seu redor, prenunciaria o chamado “homem psicanalítico”: Na literatura fantástica teríamos então um estranhamento ainda sem interioridade, como se, para se constituir, o campo da investigação psicanalítica necessitasse apenas de um novo eixo de articulação. No caso do conto de Poe, esta interioridade menos parece estar ausente do que ter sido devidamente encoberta pelo narrador-protagonista, que não deixa de se referir, como lembra a autora do ensaio, a mudanças de caráter, ao alcoolismo e à presença constante de um “espírito de perversidade” que o transforma em um criminoso.

 

Ainda assim, o fato é que a existência de uma constelação psicológica individual que determinaria suas ações pode apenas ser inferida pelo leitor ou intérprete, mas não define o contorno da narrativa de Poe.

 

Para além desses laços, o estudo que Nelson da Silva Júnior dedica ao “inquietante” em Fernando Pessoa aborda ainda as fronteiras entre a literatura e a psicanálise. Seu exame da heteronímia de Pessoa (amparado sobretudo no Livro do Desassossego, de Bernardo Soares) inverte os valores e a ordem habitual desse cotejo e nos arremessa para o outro lado do espelho: para o poeta, a presença fictícia e impalpável do “eu” ou da identidade pessoal não cabe na categoria da fantasia ou do devaneio; aqui, a realidade material de que parte a abordagem psicanalítica acaba por transformar-se em ficção. O “inquietante” ou o desassossego pessoano seria a outra face do inquietante (Unheimliche) a que Freud faz menção, por fazer com que “a crença em nossa realidade material seja questionada por uma essência fictícia de subjetividade”, ao passo que na descrição freudiana o sentimento do inquietante nasceria da reativação de complexos infantis reprimidos, provocada por uma nova impressão – familiar porém insólita, fantástica porém capaz de impor-se à percepção do indivíduo como um dado de realidade.

 

Apesar da distância que as separa, essas duas visões estariam enredadas, como anuncia o autor; em seu ensaio sobre “O inquietante”, Freud – um pensador que a sua maneira também nos soube mostrar que somos apenas “o lugar onde se sente ou se pensa”, como adverte o poeta – aponta furtivamente em sua análise que a ficção nos remeteria a algo anterior ao psiquismo, e que portanto escaparia ao seu domínio.

 

Em seus percursos, esses dois ensaios – bem como diversos outros presentes nos dois volumes – criam um jogo de espelhos singular no qual a obra de arte e a psicanálise por vezes parecem encontrar seu lugar verdadeiro ao serem removidas de seus lugares consagrados. Não surpreende que desses ensaios muitas vezes se chegue a um saldo enriquecedor para ambas, pois neles se reflete o estatuto problemático da realidade no pensamento freudiano – marcada ela mesma pela insatisfação e revolta do indivíduo contra a sua imposição.