Francês conclui: últimos 30 anos foram nada

70481_de-volta-aos-anos-60-uma-viagem-pelo-fim-do-ideal-revolucionario-406646_m3_635846488986934000

Pierre Bergounioux abre coleção de ensaios da Alameda

Publicado no caderno Cultura – O Estado de S. Paulo – Pág. D5
09 de Abril de 2006

Giovanna Bartucci

“Os trinta últimos anos podem ser reduzidos a nada. Pior que isso. Constituem uma regressão sem precedentes no campo da inovação intelectual, da luta política, da moralidade pública e das virtudes privadas. (…) O rio do futuro acabou perdido no lodo. Algumas vozes já proclamaram que a história acabou. É aí que estamos”, afirma o filósofo francês Pierre Bergounioux, no recém-lançado De Volta aos Anos 60 – Uma Viagem pelo Fim do Ideal Revolucionário. É a “sua carta enviada ao futuro”, sugerem os responsáveis pela coleção Situações, à qual o título pertence.

Criadas e dirigidas por Marcelo Rezendee Luciana Veit, as coleções Situações e Situações S.I. (som e imagem) foram concebidas como forma de intervenção cultural junto ao leitor, propondo breves ensaios sobre temas e personagens contemporâneos. Os primeiros lançamentos incluem ainda Sobre a Felicidade – Ansiedade e Consumo na Era do Hipercapitalismo, da filósofa eslovena Renata Selecl, e Ciência do Sonho – A imaginação Sem Fim do Diretor Michel Gondry , de autoria do próprio Rezende.

Se De Volta aos Anos 60 é “um comentário sobre as expectativas da civilização diante do que ela mesma constrói ou põe abaixo”, no que se refere às subjetividades contemporâneas e aos fenômenos comportamentais no atual momento do capitalismo, Salecl sugere que “nessa sociedade altamente individualizada, que prioriza as liberdades individuais sobre as causas de um grupo, o indivíduo enfrenta um ansioso e provocante dilema: quem sou eu para mim mesmo?”. Isto porque, salienta a filósofa, “a individualização toma muitas formas, mas envolve sempre a ‘fetichização’ do ser autônomo, aquele que se recusa a reconhecer a idéia de que a sociedade pode impor limites à auto-aspiração”.

Não à toa, Salecl visa estabelecer uma relação entre o fato de que se, por um lado, as pessoas hoje encontram cada vez menos limites externos, por outro, elas impõem novas proibições para si mesmas. O cerne da questão estaria depositado na idéia de que ao procurar novas formas de prazer, por meio da submissão ao consumismo na era do hipercapitalismo, o sujeito estaria procurando novas formas de limites sociais.

Em outras palavras, Salecl entende que a natureza da proibição mudou. A falta de autoridades tradicionais não tem proporcionado uma aproximação maior do sujeito à “felicidade”; ao contrário, tem promovido uma procura desesperada por novas autoridades. Se, como entende a filósofa, “o ‘eu’ é algo a que se aspira, como a última moda ou o mais recente objeto de consumo”, “parece claro que a ideologia da não autoridade se baseia em novas autoridades, como as corporações”.

Poderíamos também nos perguntar que tratamento Pierre Bergounioux daria às questões desenvolvidas por Salecl. É verdade que o autor considera que “depois de entrar, conosco, em sua fresca juventude, o mundo envelheceu, rolou pelos degraus dos anos 1970, 1980 e 1990”. E que “os últimos momentos reais, vivos e vibrantes de que tivemos conhecimento remontam aos anos 1960. E é lá que (quer) chegar”. E chega.

A viagem de Bergounioux a Havana, para participar do Salão do Livro, onde proferiu a palestra que deu origem ao ensaio, o transporta de volta aos anos 60. Assim, o clima de Havana, seus pássaros, os Buicks modelo 1953, a descoloração e degradação atingindo casas e fachadas, o tempo que “não passara por ali”, fazem do movimento pendular entre o “lá” e o “agora”, evidenciado em De Volta aos Anos 60 de maneira extremamente instigante, o seu aliado. Não é para menos: o filósofo supõe que “passada a porta do tempo, a distinção entre estar acordado ou estar dormindo cai, junto com a que opõe o presente e o passado”. O fato é que, ao transformar a experiência sensorial de um tempo que “aqui é agora” em seu aliado, o que Bergounioux faz é recordar a nós, leitores, que “apesar de serem imateriais, os sonhos não são menos reais”. Compreendidos como motor do desejo, como a esperança de um bem por vir, os nossos sonhos nos dizem, afinal, quem somos.