Fragilidade, medo, insegurança e nostalgia

livro

Consequências inevitáveis do caos da vida pós-moderna ou um preço alto demais a pagar pela liberdade trazida pelo fim do projeto moderno? Em Fragilidade absoluta, a psicanalista Giovanna Bartucci aposta na primeira hipótese, mas há controvérsias

Publicado em NOMÍNIMO.COM
10 de abril de 2006

Por Carla Rodrigues
Jornalista

O diagnóstico o leitor deve conhecer na pele: falta de perspectiva de futuro, precariedade no emprego e no mercado de trabalho, relacionamentos sociais e afetivos frágeis, ansiedade na busca pelo consumo, excesso de exigências contra prazos impossíveis, fragmentação da existência, multifacetada em inúmeras identidades, e o peso da responsabilidade absoluta pela gestão da própria vida, sem o apoio de redes de proteção institucionais, seja na Igreja, na empresa ou na família. Nesse cenário, os divãs de psicanálise estão abarrotados de pacientes com medo, insegurança e profunda sensação de vulnerabilidade.

 

É do que trata o livro Fragilidade absoluta, da psicanalista Giovanna Bartucci (Planeta, 2006, 240 págs.), uma coletânea de ensaios sobre a vida contemporânea que tem como carro-chefe dois textos que discutem a crise da atualidade. Globalização, projetos de curtíssimo prazo, horizontes encurtados, riscos e mudanças constantes são alguns dos itens de uma pauta repleta de violência. Não a cotidiana, aquela que desgraçadamente afeta os moradores das grandes cidades brasileiras (sim, além das fragilidades institucionais, ainda enfrentamos as fragilidades concretas diante de um assalto, um roubo ou tiroteio). A violência a que Giovanna se refere é de outra ordem e instaura-se diante do paradoxo entre a promessa de autonomia e a impossibilidade de realização da liberdade prometida.

 

Porque não há dúvidas de que a liberdade é a promessa principal da pós-modernidade, é o que poderia se obter de bom em relação ao mundo moderno, que previa o futuro em projetos fechados, amarrados do início ao fim, presos por critérios externos, na maioria das vezes sociais. Afinal, as redes institucionais como Igreja, família ou empresa, se existem, cobram seu preço: é preciso devotar-lhes obediência e algum grau de submissão. O desaparecimento dessas redes tem seu lado bom: maior flexibilidade, mais possibilidades de realizações individuais, contra os projetos totalizantes de outrora. Mas a conta dessa suposta autonomia também é alta.

 

A promessa de autonomia chega carregada de responsabilidades que o sujeito carrega como fardo. O imperativo da saúde é só um exemplo: não fume, corra, não tenha colesterol alto, não se deprima, não broche, não durma demais, não durma de menos, não engorde, grita a indústria farmacêutica. Você está doente? A culpa é sua, que não soube se cuidar. Está sem trabalho? A culpa é sua, que não é eficiente. Está sozinho, sem família, companheiro? A culpa é sua, que não investe num relacionamento afetivo. O peso das decisões individuais só cresce diante das imposições da indústria de consumo, que proclama a obsolescência dos objetos e dos corpos, como se a cada dia tivéssemos, nós também, que fazer o download de uma nova versão de um sistema operacional que promete nos fazer funcionar melhor. Seríamos, idealmente, capazes de nos tornar pessoas sem bugs.

 

A essa exigência permanente de performance some-se a força da ideia de que para tudo na vida agora tem remédio – prozac, xenical, viagra, e agora o modafinil, que promete manter o indivíduo acordado, são alguns dos exemplos do embate entre a psicanálise e a neurociência, essa sim disposta a explicar os sujeitos por meio de funcionamento do cérebro, dos hormônios e etc. Como, nesse cenário, apostar num processo de psicanálise de valorização do inconsciente, do desejo e, portanto, de subversão dos modelos em vigor? Desejar versus se enquadrar, parece ser essa a questão do divã contemporâneo, tomando-se esse enquadramento como aquilo que conforma o sujeito nas imposições de sucesso. Sucesso que está associado ao ter, não ao ser. Sucesso que é medido pelo que parece, não pelo que é, pela marca externa, não pelo conteúdo interno. Sucesso que, sobretudo, deve ser conquistado na realização de coisas em quantidade, não em qualidade. Quanto mais, melhor nesse mundo de tantos excessos.

 

Em que pesem todas as críticas ao mundo contemporâneo, ainda assim questiono completamente a validade de colocar as coisa nestes termos: o moderno como sinônimo de bom, do qual todos temos profunda nostalgia, e o pós-moderno como símbolo do contemporâneo cruel que nos atormenta. Nem o moderno era assim tão bom nem o contemporâneo é assim tão ruim. A liberdade, essa promessa que nunca se completa, é um valor fundamental que se amplia, ainda que os sujeitos continuem tendo que lidar com seus limites. Se nosso tempo não oferece liberdade absoluta, nem poderia. Aprender a lidar com a fragilidade – em vez de sofrer em nome de um passado onde supostamente havia mais segurança – talvez seja a grande tarefa atual do divã.

 

Aos que se interessam pelo assunto, Giovanna oferece dois excelentes artigos na coletânea: “De um mal-estar na cultura ao paradoxo instituinte” e “Fragilidade absoluta”. Os outros cinco ensaios tratam das relações próximas entre psicanálise e literatura, psicanálise e cinema e só o último parece escrito exclusivamente a estudiosos do tema.