Reality shows como No Limite valorizam um tipo de relação entre os participantes e o público que merece atenção pelos índices de audiência que podem proporcionar
Publicado no caderno Cultura – O Estado de S. Paulo – Pág. D10
15 de abril de 2001
Giovanna Bartucci
A verdade é que os reality shows, programas televisivos que pretendem substituir ficção por realidade, são a bola da vez. Seja porque têm proporcionado às emissoras de TV a possibilidade de alavancar os índices de audiência, seja porque terminaram por se tornar, para alguns, “problemas filosóficos”, os reality shows tomaram conta das TVs, tanto no Brasil, quanto no exterior, e agora em diferentes versões.
Depois de Survivor, a grande sensação nos Estados Unidos é Temptation Island (“Ilha da tentação”, exibido no Brasil pelo canal pago Fox), reality show que testa a fidelidade de casais que têm relacionamentos duradouros. Entre nós, o melhor representante da tendência é No Limite 2, da Rede Globo, embora Sufoco, exibido no Domingão do Faustão, Território Livre, da Band, sejam, entre outros, representantes à altura.
Também nesta segunda versão de No Limite – que iniciou com 12 participantes, dos 300 efetivamente entrevistados –, apenas um foi o ganhador do prêmio máximo de R$ 300 mil. Cercados de cuidados, entre médicos, enfermeiros, policiais militares e bombeiros que permanecem de sobreaviso para qualquer eventualidade, os participantes expuseram-se ao limite, mas “de maneira responsável”, de acordo com o diretor-geral Fernando Gueiros. Ao final, todos receberam uma quantia em ouro e um carro como prêmio. O segundo colocado, R$ 100 mil, enquanto o terceiro e quarto lugares, R$ 20 mil. O restante dos participantes recebeu valores decrescentes a partir de R$ 7 mil, sendo o primeiro eliminado aquele a ter ganhado somente o carro. Mais algumas informações: se a primeira versão de No Limite tinha dois anunciantes, a segunda teve, afinal, quatro, cada qual pagando uma cota de R$ 1,99 milhão. Acrescido a isso, o Estado do Mato Grosso arcou com a hospedagem, o transporte e a alimentação da equipe de produção, agora com mais de 300 pessoas. Assim, também constatamos que as despesas com infraestrutura diminuíram. Em outras palavras, se não é difícil compreender por que os reality shows tomaram conta das TVs, também não será difícil compreender por que mais de 40 mil pessoas fizeram inscrição no site da Globo, na Internet, na esperança de serem selecionadas.
Na verdade, são os números do Ibope que estão em questão. Embora a segunda série do programa não tenha apresentado o mesmo sucesso que a anterior, os índices de audiência não se mostraram tão baixos assim. E, se a escolha dos competidores teve como objetivo representar os “diferentes tipos que compõem o perfil do brasileiro”, em relação a cor, idade, ou classe social, um dos critérios mais importantes para a seleção foi a escolha dos participantes em torno de possíveis alianças e conflito entre eles. Para Fernando Gueiros, o conceito de No Limite é o de uma obra aberta, exatamente como uma novela, na qual as provas são roteirizadas idealmente para depois serem avaliadas (em relação aos números do Ibope, digamos de passagem). Uma novela, no entanto, se apresenta como ficção, por mais “realista” que pretenda ser – lembremos os debates em torno de Laços de família, última novela de Manoel Carlos, da Rede Globo.
Os reality shows, ao contrário, são apresentados ao público como uma overdose de “realidade”. Seus participantes dirigem-se à câmera “como se” a um interlocutor – sendo este interlocutor, em última instância, o próprio telespectador. No entanto, embora seja possível, sim, pensar o reality show como um gênero que envolve algum tipo de participação de cidadãos, até então reduzidos a posição de telespectadores, vagarosamente nos damos conta de que No Limite é, afinal, um programa editado. Isto implica dizer que as imagens que entram na casa do telespectador foram devidamente selecionadas; assim, a diferença parece estar, fundamentalmente, do lado do telespectador.
Também concordo, o que seduz não é, necessariamente, o conteúdo do programa, mas o fato de ser protagonizado por gente “de verdade” e não por artistas. Assim, se os participantes de No Limite se oferecem, oferecem sua intimidade – e por que não dizer integridade – física e psíquica para observação em troca de “fama e fortuna”, o que parece que temos aqui é o congelamento dos telespectadores na posição de voyeurs. É claro, o sucesso mundial do gênero diz algo a respeito do contexto histórico da atualidade. De que contexto se trata?
O que parece estar em pauta na atualidade é uma leitura da subjetividade em que o autocentramento se conjuga ao valor da exterioridade. Assim, nas últimas décadas temos podido constatar que a fragmentação da subjetividade ocupa posição fundamental na nova configuração do social constituída no Ocidente. O eu encontra-se situado em posição privilegiada, posição essa inédita nas novas formas de construção da subjetividade, caso consideremos a tradição ocidental do individualismo iniciada no século 17, uma vez que a subjetividade construída nos primórdios da modernidade tinha as noções de interioridade e reflexão sobre si mesma como eixos constitutivos. Em outras palavras, os destinos do desejo parecem assumir uma direção autocentrada e exibicionista. Ter, aqui, é ser. Ter objetos, usufruí-los, proporcionaria a satisfação almejada, implicaria ser reconhecido como imagem por um outro que também o é, situando o sujeito numa determinada definição identitária. Nestas práticas exibicionistas espera-se tudo do objeto e, consequentemente, nada do sujeito.
Tais práticas, no entanto, requerem um espectador, ou testemunha. O próprio ato voyeurista significa, aqui, o reconhecimento deste outro – exibicionista –, uma vez que aliado à problemática da satisfação, da plenitude prometida. Assim, oferecer-se como objeto a um telespectador-voyeur significa “sou já eu mesmo, plenamente”. Esvanecer os limites entre realidade e ficção indica a necessidade deste círculo vicioso no qual a ilusão da plenitude é dada a partir do congelamento mesmo do telespectador como voyeur. Não, não me parece que num espetáculo “interativo” somos convidados a “optar o tempo todo”. Ao contrário, constatamos diariamente que também programas como, por exemplo, Linha Direta ou Você Decide nos dão a ilusão da plenitude porque valorizam um presente fugaz e eterno, oferecendo-nos “satisfação-garantida-ou-seu-dinheiro-de-volta”, seja por meio da participação de cidadãos, da resolução de um caso ou crime, ou mesmo por meio do sofrimento compartilhado.
Sejamos claros: nesta prática descartável, não há lugar para experiências de perda que configurem luto – e a consequente constatação da incompletude do sujeito –, experiências que têm, efetivamente, a possibilidade de abrir caminho para a subjetivação permanente, para a alteridade e temporalidade e, nessa medida, para um futuro que tenha sentido.
Gente “de verdade” como Sávio, o professor de ginástica de 25 anos que foi o primeiro a ser eliminado da segunda fase de No Limite 2, juntou-se à participante Sônia para compor o “júri” que, como Zeca Camargo não se cansava de nos lembrar, exerceu uma função “muito importante” no programa. Função “fundamental”, eu diria: o “júri” é, aqui, imprescindível para que o círculo “participante-exibicionista-telespectador-voyeur” seja mantido, e com isso os números do Ibope.