Exercícios de contar histórias

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A Viagem traça um paralelo entre o surgimento da psicanálise e a literatura fantástica do século 19

Publicado no caderno Mais! – Folha de S.Paulo – Pág. 07
02 de Novembro de 2003

Giovanna Bartucci

Não há quem saia ileso da feitura de um doutorado. Especialmente se o sujeito em causa é psicanalista habituados que estamos a escutar nossos pacientes, e não a escrever romances ou teses. Mais ainda se o percurso em questão o leva da literatura fantástica à psicanálise e, de volta, do enigma ao mistério. De fato, em A Viagem – da Literatura à Psicanálise, livro de Noemi Moritz Kon que era originalmente uma tese de doutorado, a hipótese da autora é a de que “o surgimento e a função do pensamento psicanalítico podem ser apreciados e compreendidos também a partir das transformações ocorridas no campo literário nas décadas do século 19”. Entretanto, se a autora nos permite, simultaneamente, acompanhá-la e desfrutar do processo que a levou a elaborar um estudo por meio do qual buscou significar a relação entre o declínio da literatura fantástica e o surgimento da psicanálise, a originalidade de seu trabalho reside, e esse é o ponto, na forma que a autora permitiu que o resultado de sua pesquisa tomasse.

Os mistérios da alma

Dividido em três partes, compõe a primeira parte do livro a novela intitulada A Viagem – de Paris a Quillebeuf sur Seine, que descreve um percurso de trem de uma comitiva composta por cinco médicos e um jornalista, Sigmund Freud entre eles, da capital francesa a uma pequena cidade na Normandia, durante o ano de 1885. Interessada em desvendar os mistérios da alma humana, a comitiva tem como objetivo a construção de uma nova teoria da alma. Ficção instrumental sintético-literária -uma montagem literária feita a partir das obras de Guy de Maupassant, Edgar Allan Poe, Robert Louis Stevenson e Machado de Assis, somadas à teoria psicanalítica e biografias de Sigmund Freud e, ainda, contempladas da perspectiva arqueológica de Michel Foucault -, a novela é o percurso mesmo, realizado por meio da narrativa de histórias de cunho fantástico relatadas pelos viajantes, que nos leva da literatura fantástica à psicanálise.

Tão fundamentais à obra quanto a novela escrita pela autora, no entanto, são a segunda e a terceira partes do livro, que perfazem o caminho de volta, do enigma ao mistério. De fato, “Os Bastidores”, segunda parte do livro, composta de quatro capítulos propostos sob a forma teórica e analítica, “Resenha das Fontes”, “A Construção de ‘A Viagem’”, “De Parágrafo em Parágrafo”, “Ainda uma Observação” e, incluo aqui também, as “Notas” – ainda que, por vezes, as elaborações contidas nas mesmas possam se sobrepor às elaborações formuladas nas partes anteriores -, permite que acompanhemos o cerzimento da novela pela autora, de parágrafo em parágrafo.

Enquanto “Os Bastidores” também traz a tese de que “é possível compreender a criação do pensamento freudiano e do novo homem por ele concebido também por meio de suas ressonâncias e confluências com a literatura fantástica”, “O Milagre, o Mistério e o Enigma”, terceira parte do livro, é, de fato, o caminho de volta, do enigma ao mistério. E, talvez nesse sentido, apontar a originalidade da forma seja pouco. Aqueles que conhecem a obra anterior da autora, “Freud e Seu Duplo – Reflexões sobre Psicanálise e Arte” (Edusp/ Fapesp), poderão constatar, com prazer, o salto dado por Kon nesse novo trabalho. Se, em seu primeiro livro, Kon pensa o artista como o duplo amado (e temido) do psicanalista, A Viagem é o exercício mesmo dessa proposta. E, com efeito, a possibilidade de acompanharmos a escolha dos escritores e autores com os quais a autora trabalha é somada à explicitação da sua maneira de compreender o fazer psicanalítico, descrito por ela como “um fazer do mistério, e não do enigma”; da perspectiva da autora, “o processo de composição desse estudo espelhou uma prática da psicanálise”. “Procurei criar uma história atualizando e dando corpo a um virtual possível; ficcionalizei a busca de uma origem mítica do pensamento psicanalítico”, diz a autora.

Se “criar histórias é próprio do ofício do escritor”, para Kon “é também o próprio trabalho do psicanalista”, e é nesse sentido que a autora, de fato, dá um salto e “faz arte”.