Publicado no caderno Sabático – O Estado de S. Paulo
4 de fevereiro de 2012 – p. S3
Giovanna Bartucci
“Um grande livro como a Divina Comédia (séc. 14) não é o capricho isolado ou casual de um indivíduo; muitos homens e muitas gerações convergiram para ele”, afirma Jorge Luiz Borges (1899-1986) em Nove Ensaios Dantescos & A Memória de Shakespeare (2011) – reunião de textos críticos sobre a obra de Dante Alighieri e quatro contos – que ganhou nova edição pela Companhia das Letras.
Com efeito, seus Nove Ensaios Dantescos (1982) poderiam ser condensados na idéia de que “investigar (os) precursores (da Divina Comédia) (…) é indagar os movimentos, as sondagens, as aventuras, os vislumbres e as premonições do espírito humano”. Assim, é com extrema delicadeza que o escritor argentino se aproxima desta “obra mágica”, deste “microcosmo de âmbito universal”, ao mesmo tempo em que se debruça sobre os personagens e seus processos mentais.
Será, contudo, por meio do exercício de transformar o seu presente num curvar-se para trás no tempo e num permanente vir-a-ser que Borges identificará, nos versos do italiano, justamente uma antecipação de sua própria obra. Desse modo, os temas que lhe são caros e que permeiam grande parte de sua criação – a idéia de que todo homem é também outro homem, ou mesmo todos os homens; de que o passado, o presente e o futuro existem simultaneamente na eternidade; de que a realidade é dúbia e incerta, e o universo uma unidade total na qual a individualidade é mera ilusão – logo se tornarão evidentes para o leitor.
Por outro lado, em A Memória de Shakespeare (1983), composto pelo conto-título e ainda “25 de agosto de 1983”, “Tigres Azuis”, “A Rosa de Paracelso”, o leitor se deparará com as temáticas do sonho e do sonhar, do duplo e da memória. Afinal, “a memória do homem não é uma soma; é uma desordem de possibilidades indefinidas”. De fato, não à toa, Borges acredita que “Dante edificou o melhor livro produzido pela literatura para intercalar alguns encontros com a (sua) irrecuperável (e para sempre amada) Beatriz”.