Entre psicanálise e literatura, o sujeito

Literatura

Publicado em Percurso. Revista de Psicanálise – Ano XVIII  – nº 35 – Págs. 172-175  Segundo semestre de 2005

Por Tania Rivera
Psicanalista e Professora da Universidade Federal Fluminense – UFF

 

“Minhas pálpebras não abriam mais, mas ainda vi,
flutuando adiante, uma cópia imperfeita de mim mesma,
desmembrada, víscera exposta, contornos que
não me pertenciam, onde estava a poeira macia de Alexandria?
Disse, muda:
Para onde me levam?”
Marília Pacheco Fiorillo
(“O Jardim das Delícias”)

 

Fomentar um diálogo entre a literatura e a psicanálise é, sempre, construir uma reflexão sobre o sujeito. Tal constatação levou a psicanalista e ensaísta Giovanna Bartucci à iniciativa bem-sucedida de organizar Psicanálise, literatura e estéticas da subjetivação, que faz conjunto com dois outros volumes dedicados às relações da psicanálise com o cinema e a arte. O livro traz contribuições de alguns dos competentes autores, em psicanálise e teoria literária, que tratam hoje do diálogo entre os dois campos no Brasil, além de presentear o leitor com alguns capítulos de uma novela da escritora e ensaísta Marília Pacheco Fiorillo, ganhadora de dois prêmios Jabuti.

 

É bem sabido que Freud atribui ao escritor literário um saber privilegiado sobre o inconsciente e explora, para a própria criação da psicanálise, obras como Édipo-Rei e Hamlet. Questões referentes ao próprio trabalho do analista aparecem em seu famoso ensaio sobre a novela Gradiva – uma fantasia pompeiana, de Wilhelm Jensen. Se por vezes Freud deita personagens no divã em busca de confirmações culturais para suas hipóteses, sua visada interpretativa cede o passo diante da importância estruturante do apelo a obras literárias, principalmente aos clássicos, para a construção da teoria psicanalítica em consonância com sua experiência clínica. Tal é a inflexão que vemos disseminar-se na produção teórica psicanalítica das últimas décadas, onde a abordagem interpretativa, psicobiográfica ou ilustrativa da teoria se enfraquece em prol de uma aproximação da arte e da literatura que visa recolocar em questão a própria psicanálise, suas condições de funcionamento e o sujeito de que ela trata (e que ela ajudou a construir por sua incidência na cultura).

 

É nessa perspectiva de reflexão sobre o sujeito que vão se tecendo, ao longo dos escritos que compõem Psicanálise, literatura e estéticas da subjetivação, pensamentos acerca de questões que interessam ao campo da psicanálise como ao da literatura, como a da autoria e a dos efeitos da escrita, da leitura e do trabalho analítico sobre o sujeito. Em “Uma psicanálise finda: sobre a eficácia clínica do processo de leitura”, Bartucci privilegia a concepção de sujeito do inconsciente como destino de pulsões para defender a ideia de que a criação artística (e literária) permitiria uma construção de destinos pulsionais, de inscrição simbólica da pulsão. Daí vem a pergunta sobre a eficácia clínica do processo de leitura que dá ao artigo seu subtítulo, e será desdobrada, em analogia com o trabalho de análise, como a possibilidade de o sujeito, a partir de sua condição originária de desamparo, vir a forjar “um lugar-outro a partir do qual a interminabilidade de seu processo analítico mantém-se em marcha” (p. 38).

 

Maria Rita Kehl nota, por sua vez, que o sujeito moderno poderia ser chamado hoje tanto de “sujeito do inconsciente” quanto de “sujeito literário”, “não como duas faces de uma mesma moeda, mas como duas pontas da corda esticada sobre a qual nos equilibramos” (p. 63). Entre o sujeito que a narrativa romanesca reafirmaria como personagem e o sujeito que o inconsciente faria deslizar e escapar, estaríamos em constante tensão, frágeis equilibristas. Perdido seu trono metafísico, o ser teria “que se recriar a cada dia, pelo trabalho de cada sujeito falante, revestido de uma pele frágil feita de palavras – as quais, se não forem fixadas em papel, o vento leva” (p. 64). Traçando um amplo panorama das vicissitudes do sujeito na modernidade, a autora localiza culturalmente tanto o surgimento da literatura propriamente dita quanto as condições para a invenção da psicanálise. Diante da determinação literária do sujeito, cumpre perguntar: como opera a psicanálise? Em uma operação radicalmente estética, como indica Lacan ao falar da possibilidade de transformação do romance que é a vida de cada um em um conto, graças à análise.

 

O teórico da literatura Luiz Costa Lima aborda também a configuração contemporânea do sujeito para propor uma sofisticada concepção da literatura como mimesis. Ele põe em questão a ruptura entre sujeito “solar”, cartesiano, e a noção contemporânea de sujeito fragmentado, mostrando em Kant e mesmo em Descartes – sobretudo em sua releitura pelos jansenistas – uma certa fragmentação que marca a teorização acerca do sujeito e da representação. O texto desemboca na ideia de mimesis como “um composto de duas variáveis: a diferença – ou seja, uma espécie de vazio – que prevalece, no texto artístico (literário e pictórico) sobre a semelhança – sinônimo da aparente completude” (p. 217). Aludindo a Montaigne (“A fala é metade daquele que fala, metade daquele que escuta”), Costa Lima propõe que o escritor, sujeito fraturado, “possui apenas a metade da palavra que escolheu”, deixando ao leitor as brechas onde criar, leitor-crítico, filósofo ou escritor, a outra metade.

 

Noemi Moritz Kon mostra belamente, com “O gato preto”, de Edgar Allan Poe, que o homem configurado pela literatura fantástica no século XIX fornece o enigma que Freud tenta solucionar com a criação da psicanálise. A obra de Freud é uma versão, portanto, do mistério acerca do homem que formula a escrita de Poe, Maupassant, Stevenson e Machado de Assis, entre outros, mas nessa versão algo se transforma e precipita como o inconsciente psicanalítico. De versões trata também o artigo de Eneida Maria de Souza, que apresenta com precisão e fluidez a passagem da noção de intertextualidade para a de transtextualidade, sublinhando o caráter de tradução inerente à escrita literária e o exílio do autor em que ela implica. Também o crítico literário aparece aí como um criador de versões para sua própria vida – ele se caracteriza, na formulação do escritor argentino Ricardo Piglia, como “aquele que reconstrói sua vida no interior dos textos que lê” (p. 137). A própria vida, mostra Eneida, tem um tanto de tradução da literatura – “Madame Bovary somos nós”, conforme seu título.

 

Ruth Silviano Brandão, com seu “A vida escrita: os impasses do escrever”, segue na mesma direção, mas privilegia a posição do escritor como sujeito produzido numa escrita-inscrição. Lembrando que o escritor é de saída e fundamentalmente leitor, a autora faz convergir escrita e leitura como reescrita, em um texto alheio, do “texto interno” de cada um – texto já múltiplo, retalhado, fragmentário, citacional. Propõe a interessante noção de “travessia da escrita”, em analogia à travessia do fantasma, como uma mudança de posição do sujeito marcada por “uma certa superação do imaginário, um despojamento dramático, um esvaziamento dos significantes” (p. 167) que seriam legíveis na obra de Machado de Assis e de Lúcio Cardoso.

 

Em “Totumcalmum. A condição de exílio da escrita”, Edson Luiz André de Sousa explora com delicadeza e fluidez o exílio e a estranheza implicados na escrita e na leitura, indicando como função primordial da escritura a de suscitar o intervalo entre o um e o outro onde surge o sujeito, velando pela alteridade necessária em nossa relação com a linguagem. Torcendo a frase de Mallarmé, “Diante do papel o artista se faz”, propõe que o autor aí se desfaz. Fiel à ideia de uma multiplicidade inerente à posição do autor nesse desfazer-se, Edson Sousa convoca diversos nomes: Eliot, Joyce, Marcel Duchamp, John Cage etc., para com eles tecer seu texto, seu lugar retalhado e poético, à maneira talvez da Waste Land (Eliot) por ele evocada. Nós, leitores, somos então incitados a um verdadeiro trabalho de leitura para suportar tal desequilíbrio, tal ameaça de queda e perda que nos permite um frágil lugar na obra literária e artística.

 

Joel Birman aborda a delicada questão da “forma de ser” (p. 185) do escrito psicanalítico notando sua multiplicidade estilística, decorrente da pluralidade inerente às produções inconscientes. Lembrando o valor da transmissão em psicanálise, o autor defende o papel central da transferência como inscrição no corpo da qual deve derivar o escrito. Uma retórica própria ao campo da psicanálise teria sua fonte e matéria primeira na experiência da transferência que torna possível uma “poética do inconsciente e das pulsões” (p. 191). A especificidade desta escrita residiria no fato de ela trazer em sua tessitura as marcas de tal transformação. Na narrativa clínica, o campo transferencial seria escandido pelos momentos cruciais em que a singularidade e os destinos do sujeito se inscrevem, possibilitando a inscrição em um discurso.

 

A segunda parte do livro é composta de ensaios que se consagram mais diretamente ao diálogo com um autor ou obra. Mário Eduardo Costa Pereira traz uma interessante leitura em “Melancolia e subjetivação em Aurélia, de Gérard de Nerval”, sublinhando com cuidado as ressonâncias entre a obra e a vida do escritor e abrindo brechas para novas formulações acerca da subjetivação na escrita e na psicose. Nerval o leva a privilegiar questões sobre a melancolia e as possibilidades de inscrição simbólica do sofrimento psíquico, tendo como horizonte o suicídio perpetrado pelo escritor justo quando, em sua obra, uma possibilidade de cura parecia esboçar-se. Tal paradoxo entre salvação e perda do sujeito na escrita é atacado de frente por Ana Cecília Carvalho em seu denso “Pulsão e simbolização: limites da escrita”. Em companhia da poeta Sylvia Plath, também suicida, Carvalho sublinha como inerente à escrita literária uma destrutividade ligada a “uma espécie de crise da representação, na qual se perfila – muito além da aposta feita no sentido de se encontrar ou não uma representação para a morte, sobre a qual o texto vai-se construir – (…) a sombria e inevitável possibilidade de que a morte real do autor seja, num mesmo golpe, inscrição, representação e limite” (p. 265).

 

Em “A ficcionalidade da psicanálise. Hipótese a partir do inquietante em Fernando Pessoa”, Nelson da Silva Jr. articula o Unheimliche freudiano à heteronímia pessoana, ressaltando na ficção o desocultamento de “um nada anterior ao psiquismo” (p. 294). O desassossego em que nos põe Pessoa estaria ligado ao que o poeta nomeia como sua capacidade de “outrar-se”, que deixa entrever uma terrível verdade: a precariedade do fundamento mesmo de seu (nosso) ser: “Cheguei hoje, de repente, a uma sensação absurda e justa. Reparei, num relâmpago íntimo, que não sou ninguém” (citado à p. 306). A própria subjetividade parece ser, enfim, essencialmente fictícia.

 

Frente à história do sujeito como ficção nos põe radicalmente Miriam Chnaiderman em “Wilkomirski: o testemunho como invenção”. Wilkomirski escreveu uma suposta autobiografia como sobrevivente de um campo de concentração que foi aclamada pela crítica e tornada best-seller. Narrada através da criança que não compreenderia sua horrenda realidade, a obra é terrível pela força de suas imagens que nos torna vítimas dessa “escrita perfurante que é pura sensação”, nas palavras de Chnaiderman. Ironicamente, descobre-se que o escritor não seria judeu nem teria sido vítima dos campos nazis. Chnaiderman trabalha com a hipótese de sua escrita consistir em uma espécie de reconstrução delirante de sua história, tendo o mesmo estatuto que o da construção em análise. O próprio escritor declara, no contexto da pressão para que se reclassificasse o livro como ficção, que sua biografia seria inverificável: “lembranças infantis nunca serão nada além de histórias” (citado à p. 358). Colocando em questão, como a psicanálise, o limite entre realidade e ficção, o testemunho de Wilkomirski mostra, para Chnaiderman, que “na irrealidade estabelecemos pontes que vão permitindo a simbolização de um excesso insuportável que pede e impede e volta a pedir para ser falado” (p. 364).

 

Jorge Luis Borges parece concordar com Wilkomirski e com Fernando Pessoa ao dizer: “Por que diabos me preocupar com o que acontece com Borges? Afinal de contas, Borges não é nada, é uma mera ficção” (citado à p. 377). No artigo “Entre o mesmo e o duplo, inscreve-se a alteridade. Psicanálise freudiana e escritura borgiana”, Giovanna Bartucci mostra que o jogo de espelhos que configura o universo ficcional borgiano é o próprio lugar psíquico de constituição da subjetividade, entendido como “o movimento constitutivo de apropriar-se continuamente, ora observando-se a si mesmo, ora a seu duplo” (p. 373). O Unheimliche atuaria como mediador entre o mesmo e o outro, permitindo o acesso à alteridade que marcaria tanto o processo analítico quanto o ato da criação, da escritura, como criação de um sujeito. Uma função similar, para João A. Fayze-Pereira, marcaria a correspondência de Mário de Andrade a Portinari: através deste último, Mário “expressa uma parte de si, dimensão que dificilmente chegaria a contemplar a partir de si mesmo” (p. 325), segundo escreve o autor em “Cartas de Mário de Andrade a Portinari: uma questão de sobrevivência”.

 

Nessa valiosa coletânea revemos obras literárias sendo colocadas lado a lado com a psicanálise e reencontramos a própria psicanálise diante do enigma sempre reformulado pela literatura. Entre as duas, cada um de nós é convocado a se equilibrar precariamente, um tanto estranhado por vezes, perguntando, mudo como a personagem de Marilia Pacheco Fiorillo em nossa epígrafe: “para onde me levam?”.