Publicado na revista Ide. Psicanálise e Cultura – Volume 29 – nº 43 – Págs. 166-167
Segundo semestre de 2006
Por Camila Pedral Sampaio
Psicanalista
Segundo Rilke (1994, p. 24), a qualidade de uma obra deveria ser avaliada em relação à necessidade a partir da qual foi gerada. Boa seria a obra que nasceu por necessidade. “Neste caráter de origem está o seu critério – o único existente.” Disso resulta que, diante de uma obra, cabe perguntar sobre a necessidade que a gerou: sobre sua expressão e sobre sua intensidade. Sobre sua urgência.
No caso do conjunto de ensaios reunidos sob o nome de Fragilidade absoluta – Ensaios sobre psicanálise e contemporaneidade (Planeta, 2006, 237 págs.), de Giovanna Bartucci, a necessidade que parece ter gerado tal empreitada é a que tem sido compartilhada por vários dos mais importantes psicanalistas brasileiros: a de pensar a clínica psicanalítica contemporânea, a de avaliar o quanto, na interface psicanálise & cultura, em face das mudanças operadas no mundo contemporâneo, cabe reconsiderar e redimensionar algumas das ideias psicanalíticas consagradas, em termos teóricos e clínicos, no intuito de tornar a psicanálise capaz de apreender o sujeito na atualidade e dimensionar sua sintomatologia e seus sofrimentos.
Mas não se engane o leitor. Fragilidade absoluta, apesar do tom poético de seu título, não nos introduz num terreno de poesia e intimidade. Pelo contrário, traz-nos a um conjunto de textos densos, complexos, e a um tema não menos espinhoso, para cujo enfrentamento a autora se arma com considerações advindas das diversas áreas que cercam o debate da psicanálise com a cultura. Passamos por referências antropológicas, sociológicas, históricas, literárias e até cinematográficas, mas também por elucidativos aprofundamentos na própria obra freudiana e nas considerações de psicanalistas contemporâneos. “Fragilidade absoluta” é igualmente o título do menor dos ensaios que compõem o livro e daquele que expõe mais abertamente seus motivos, suas entranhas, amarrando a si as temáticas densamente teóricas que percorrem o livro em espiral. A tentativa de circunscrever os limites do enfrentamento da psicanálise com os novos sofrimentos psíquicos é, portanto, o campo geral no qual se desenham as problemáticas tratadas ao longo de todo o texto e dos vários ensaios apresentados.
A tarefa é importante, urgente mesmo, diante daquilo que se tem apresentado como sofrimento psíquico em nossa clínica, ou daquilo que se apresenta até mesmo como impossibilidade de formulação de um problema relativo a um sofrimento nem sequer experimentado, mas suposto pela condição crítica que porta o psicanalista na análise da experiência humana. Sem garantias, sem ideais, em face da experiência modificada do espaço e do tempo, o que se pede aos sujeitos nesta pós-modernidade é que “sejam ágeis, que estejam disponíveis para mudanças em curto prazo, que assumam riscos continuamente, que sejam independentes” (p. 72). Constatamos, neste contexto, o flagrante despedaçamento do sujeito e uma decomposição de suas instâncias ideais, o que representa profunda violência restritiva imposta à liberdade subjetiva.
Esse perfil configura-se como uma nova modalidade de sofrimento – muitas vezes não formulado como sofrimento – que requer de nós, psicanalistas, novas estratégias de inteligibilidade, sendo esta a grande pergunta: “Que seremos capazes de construir, criar, dado este lugar-limite, borda-margem na qual nos encontramos?” (p. 73). Sim, porque de fato trata-se de criar novas possibilidades de entendimento e de ação que permitam que a psicanálise não se torne obsoleta, neste mundo em que tudo se torna moda efêmera; trata-se de criar as condições para que a nossa disciplina mantenha sua força de subversão e reafirme sua competência clínica.
Do ponto de vista da autora, o mal-estar na psicanálise está relacionado ao fato de que ela estaria, enquanto projeto, na contracorrente da tendência cultural pós-moderna, ao mesmo tempo que dela se exigiria uma torção narrativa, ou a criação de novas narrativas, capazes de dar conta das características atuais da subjetividade, que fazem supor a presença de um conflito neurótico “cuja gênese não se encontra primariamente na sexualidade edípica” (p. 91), tomando a trama edipiana como ordenação do desejo, a partir da organização do “devir humano em torno da diferença dos sexos e da diferença das gerações” (p. 93).
Segue-se, necessariamente, a questão relativa ao lugar e à função do psicanalista na clínica contemporânea. Considerando as características das subjetividades na contemporaneidade, a autora propõe que a experiência psicanalítica seja pensada como um “lugar psíquico de constituição de subjetividade, por meio do qual processos fundadores dos sujeitos possam se dar” (p. 92), e isso, sobretudo, para “aqueles sujeitos cujo destino como sujeitos será sempre o de um projeto inacabado, produzindo-se de maneira interminável” (p. 76), o que, em tese, permitiria retomar o caráter fundamentalmente subversivo associado à criação da disciplina psicanalítica.
Com essas questões em mente é que a autora examina não só alguns fragmentos clínicos, elucidando através deles suas observações, como também fragmentos da cultura, se assim se pode dizer, tramas de filmes, trechos de obras literárias, o processo mesmo da escritura e também trechos biográficos de Borges e do próprio Freud, todos narrados com perspicácia e delicadeza, fazendo agudos apontamentos sobre o valor da experiência psicanalítica, como um “lugar-outro”, no qual “a prática clínica deve estar necessariamente vinculada a uma reflexão teórica que torne possível a construção de novas configurações, mudanças de lugar, reorganizações dos paradigmas conceituais” (p. 168). É, assim, para a ideia de transformações no interior da disciplina psicanalítica, diante das novas formas de produção de subjetividade implicadas pelos processos de globalização neoliberal, que a autora nos convoca, salientando o atravessamento do sujeito pelas esferas públicas e ideológicas.
Se pode, no entanto, afirmar que “é certo que os sujeitos serão atravessados por elementos ideológicos e não somente por variáveis que dizem respeito às condições de constituição psíquica” (p. 96), apontando para o necessário atravessamento subjetivo por forças e elementos pertencentes ao âmbito sociocultural, naquilo que é chamado de “produção de subjetividade”, não é sem complicações que a constituição psíquica se relaciona à esfera da produção social do sujeito no mundo contemporâneo. “A questão que se coloca na contemporaneidade parece se relacionar à sobreposição – ou não – dos elementos que dizem respeito à produção de subjetividade e os elementos associados às condições de constituição psíquica dos sujeitos” (p. 96). Tudo indica que não há, na atualidade, uma sobreposição entre os elementos de uma e de outra esfera, operando-se entre a produção social do sujeito e a constituição psíquica uma dissociação.
Haveria que assinalar, de acordo com a autora, entre esses dois âmbitos de constituição, a presença de um paradoxo, examinado a partir da discussão sobre o desenvolvimento social e histórico no século XX: “Se, na atualidade, as variáveis que se referem às condições de constituição psíquica dos sujeitos e os elementos relativos à produção de subjetividade não conduzem necessariamente a uma sobreposição, a possibilidade da presença de processos constitutivos no bojo dos processos da cultura será o que nos restará considerar, afinal” (p. 62).
É assim que a leitura, a escritura, o cinema e, sobretudo, a experiência analítica ganham em seu texto a função de processos constitutivos do sujeito que se tornarão parceiros fundamentais na tarefa de criação de sentido e de significado. Aqui encontramos a “inovação estética e o experimentalismo, (…) originando-se de dinâmicas constitutivas do sujeito, e vindo a promover, possivelmente, processos reflexivos” (p. 65).
O texto lança mão de uma função utópica e, em nome “da firme esperança de um bem por vir – na medida exata em que determinada etapa histórica não seja compreendida como permanente e que a sociedade humana seja considerada capaz de mudança, o presente não sendo o seu destino final” (p. 67), procura reafirmar o caráter subversivo e fundamentalmente criador contido na experiência psicanalítica.
O oposto exato da fragilidade absoluta seria, segundo penso, a força bruta. Fragilidade é o que nos localiza como habitantes do mundo da linguagem, desamparo pelo qual nos encontramos limitados e condenados a investir e transformar. Sem algo de constituinte que nos defina a priori. Fragilidade é a deste lugar de ausência de garantias, de instabilidade de ideais e de devires. Fragilidade é a desta recusa ao império da força brutal – da tecnologia, da globalização, da economia neoliberal ou da tecnociência, por exemplo –, que reduz e comanda corpos e mentes sem considerações às suas constituições subjetivas, implicando os sujeitos em processos de produção serial e desencarnada. A defesa da fragilidade implica uma posição ética. Posição tão frágil como absolutamente necessária.
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Referências
Rilke, R. M. (1994). Cartas a um jovem poeta. A canção de amor e de morte do porta-estandarte Cristóvão Rilke (21 ed., P. Ronai; C. Meireles, Trads.). São Paulo: Globo.