Publicado em Pulsional. Revista de Psicanálise − Ano VIII − nº 74 − Págs. 65-67
Junho de 1995
Giovanna Bartucci
‘Quando encontrá-la (…) reconhecerá na primeira
linha a palavra serendipity, nascida em Serendib −
o dom de encontrar tesouros maravilhosos no
lugar mais inesperado, exatamente onde nunca se
buscou, bem perto.’ Homens − Pág. 112.
Há pessoas que não precisam de apresentações. Há outras que necessitam ser apresentadas, e há também aquelas que se tornam presentes através de seu trabalho. Marilia Pacheco Fiorillo é uma destas pessoas. Acabando de lançar seu segundo livro neste ano que passou, Marilia é uma escritora que transforma o mundo das palavras em mundo ficcional − ficcional, porém real. Real porque o texto ficcional, como ele o é aqui concebido, é “forma na ausência de realidade”, sendo sua realidade corporificada através da participação do leitor no processo de leitura, já que esta conduz à própria construção do texto. O processo envolve o leitor de forma a promover mudanças no pensamento e atitude, uma vez que o leitor experiencia as realidades ficcionais do texto como um processo de escolha. A isto denominamos, em literatura, de Estética da Recepção. Mas esta é uma outra história; melhor será irmos ao que nos interessa.
O que nos interessa aqui é Homens (L&PM, 1994). Mas… você havia previsto ler aquele texto de Freud que ainda não leu, ou reler aquele outro, uma vez que amanhã é dia de dar aula e você quer estar afiadíssimo(a).Ou então, você quer aproveitar o dia para ler Ferenczi, Klein ou Bion. Afinal, Freud é o pai de todos, mas não é Deus.
Não, não é nada disso. Hoje é dia de estar com a família, afinal, são tão poucas as horas do dia que, além de também prover o pão nosso de cada dia, você, psicanalista Zen que é, não quer ficar pagando anos a fio um colega seu porque seu filho ou filha saiu correndo atrás da empregada com o facão a ser utilizado quando cozinhando poulet à casserolle… Afinal, se for possível, recoste-se no sofá, ou na bèrgere do quarto do casal, ou sente-se na varanda sob o sol das 10 horas da manhã (é sempre bom prevenir-se contra o sol do meio-dia) e prepare-se para saborear Homens. Prepare-se, porque não é frequente a leitura de um texto literário remeter-nos tão profundamente a nossa clínica cotidiana. (Você já percebeu que quero garantir, para Homens, aquele espaçozinho na sua agenda tão lotada.)
Homens é aquilo que nomeei pura ficcionalidade: realidade travestida de ficção, que toma corpo no processo de leitura. E não se trata aqui da questão da fantasia, sua especificidade, etc. etc. − mas, sim, penso eu, de uma certa tragicidade humana que só parece ter lugar, nos dias de hoje, nos nossos divãs.
Pois que, o que dizer desses personagens tragicômicos que a autora nos apresenta? O que dizer das aulas de Caratê, Yoga, Zen-Budismo, Terapia das Cores, Radiônica, a vidente de quem te falaram muitíssimo bem na semana anterior, a numeróloga e, eu havia esquecido, o astrólogo de plantão, para alguns, e para outros, o pronto-socorro homeopático, que não chega nem aos pés de toda essa gente? O que dizer, quando mulheres procuram “Homens”, que afinal descobrem ter um moranguinho tatuado aquele palmo acima que só elas pensavam conhecer? O que dizer de tudo isso? O que pensar de tudo isso, uma vez que em psicanálise o pensamento elaborativo tem também função preventiva? O que pensar daquele que diz que a ama conquanto ela recite as linhas ditadas por ele? Quanto mesmo você disse?
Não é à toa que Homens nos remete, nem tão explicitamente quanto possa parecer, a tantas incursões analíticas. Pois que duas sátiras vestem perguntas fundamentais, sendo as mesmas desveladas em “As três princesas de Serendib”.
Assim que, frente as perguntas fundamentais: “Enfim, um homem?”, “Quanto às pernas, como transformar um pontapé no queixo num gesto de luxúria?”, “…ela ia adaptando os koans clássicos à sua própria realidade?”, “Ela nunca sabia, por exemplo, quem era o sujeito das frases ‘Gostar muito?’, ‘Treinar todo dia?’, se eram perguntas a ela dirigidas, a que ela deveria responder ‘sim, sim’, ou declarações de belíssimas intenções por parte dele”.
Eis que “Veio-lhe outro satori”, e “Pela segunda vez na vida, não teve dúvidas, e agiu antes de pensar”: e, sem mais, já fazia parte de seu ser “A importância de ser prudente”.
Pois que “O prazer da degustação jamais provinha do que o outro nos oferecesse − um raciocínio, uma analogia, expressões em latim − mas, invariavelmente, do que nós próprios estávamos a ruminar. O sabor era mais natural: estava em nossas laringes, não nos ouvidos”. Angústia. “As pontuações das frases (consequentemente, dos raciocínios) ficavam meio mal-ajambradas, mas antes uma sintaxe modernista que ter a voz cassada.”
Mas, eis que “Ela viu, nesta ordem”. E, o que pensar da ordem dos fatos? “Ela viu, nesta ordem.” Ordem esta posta à maior parte da humanidade, que a transmuta numa certa ficcionalidade. “…íamos nos interessar um pelo outro. Ele se comoveria com meus caprichos e me ofereceria um empréstimo. Eu me afligiria com sua gastrite, e lhe compraria gotas homeopáticas.”
Por sorte, “(há) uma coisinha capaz de pôr a pique todas estas categorias e as demais: o acaso”. E o acaso quis que “el caminante” se deparasse com uma fábula en “el camino”. Fábula esta que veste um processo elaborativo, pois que é no sonho (aqui, narração alegórica) que a personagem de “As três princesas de Serendib” (grifo meu) encontrará sua resposta. “Num tempo em que as palavras descreviam com exatidão cada coisa.” Pois que “O segredo das princesas era tão simples quanto o da flor:… Corpo, Alma e Nome eram inseparáveis”. Uma vez que “nomes próprios, (…) estes são feitos de uma substância que não pode ser adulterada”. “A coincidência entre nome, alma e corpo só diz respeito ao Criador e a sua criatura, e não às imagens que os outros dela têm.” E “Dizem que só aqueles que conquistaram o dom de dizer ‘não’ sem alarido, com doçura e suavidade, são capazes de caminhar direto até ele. Dizem, também, que quem já esteve em Maga é capaz de reproduzir o palácio sagrado dentro de seu próprio quarto, ou num círculo imaginário, em qualquer lugar”.
Assim que duas sátiras e uma fábula, aparentemente independentes umas das outras, possibilitam ao leitor, desde quebras de discurso, pontos de indeterminação, negações, e fundamentalmente, diferentes realidades ficcionais, a construção do próprio texto, um outro texto. “Ela agora sabe o que tem de fazer. Despojar do corpo todos os antigos objetos, sentimentos, memória, as partículas impuras e desnecessárias, a intrusão.
Recompor nos átomos do corpo cada acontecimento, passado, presente, por vir. Eles provavelmente não irão notar, nenhum deles, e não será preciso explicar-lhes. (…) Nunca, nunca mais fugir de dentro do círculo mágico.”
O brilhantismo da escritura de Marilia Pacheco Fiorillo está em que, afinal − e sua escritura nos faz lembrar dos textos de Clarice Lispector, Marguerite Duras e as escritoras portuguesas contemporâneas –, possamos rir de nós mesmos. Caçoar um pouco da tragédia humana. Se você disser que isto não é lá muito louvável, lhe responderei que depois da leitura de Jean Pierre-Vernant, Mito e tragédia na Grécia Antiga, talvez seja possível reconhecer, na sua capacidade de um certo deboche das coisas, uma certa dignidade. Claro, tudo é uma questão de pesos e medidas.
Grande literatura, se você me permite, é aquela que, como tudo na vida, pressupõe que aquele do outro lado do texto, do outro lado da linha telefônica, do outro lado do telão, do outro lado do palco, do outro lado da mesa, do outro lado da cama, do outro lado da sala, enfim, do outro lado de nossas palavras-falas, que o seu prazer de degustação advenha não só daquilo que o outro lhe ofereça, mas também, e fundamentalmente, daquilo que ambos possam criar, desde o encontro do um com o um do outro, engajados na produção do terceiro, também diferenciado tanto para o um como para o outro.