Borges: a realidade da construção

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Publicado na revista Ide. Psicanálise e Cultura – nº 29 – Págs. 121-122
Dezembro de 1996

Por Miriam Chnaiderman
Psicanalista

 

Giovanna Bartucci é uma psicanalista que teve sua formação primeira em literatura: há treze anos concluiu seus estudos em Maine, Estados Unidos, quando ainda pensava na psicanálise. É na sua volta ao Brasil que cursou psicologia e fez sua formação analítica, tendo iniciado sua prática clínica. Seu livro é marcado por sua trajetória: nele procura unir suas duas paixões, adentrando, através de Borges, pelas intricadas relações entre a psicanálise e a literatura.

 

Giovanna Bartucci, além de se dedicar ao estudo dos textos de Freud, mostra ser conhecedora apaixonada tanto da teoria literária como da obra de Borges. Seu capítulo inicial faz um levantamento exaustivo das várias teorias que pensam a relação entre a retórica e a ficção. Ao escolher trabalhar com a crítica retórica, interessa-se pelos efeitos da obra literária, fazendo uma distinção entre o crítico retórico (que “tenta mostrar que as escolhas dos recursos léxicos e sintáticos disponíveis feitas pelo autor estão relacionadas com o tema, o gênero…”) e a obra retórica literária que “preocupa-se em causar uma mudança de pensamento ou de atitude no leitor…”.

 

Borges, em diálogo com alguns psicanalistas argentinos (Del escrito, Letra Viva, Buenos Aires, 1922), afirma que “não há uma grande diferença entre o leitor e o escritor” (…) não há uma diferença essencial entre ler e pensar”. Giovanna, baseando-se em Iser – com quem polemiza –, fala em uma “assimetria fundamental entre o texto e o leitor”. Discordando de Borges? Não necessariamente…

 

Iser propõe uma suspensão de ideias e atitudes para “poder experienciar o mundo estrangeiro do texto literário”. Para Giovanna, são “nossas ideias e atitudes familiares que são forçadas a vivenciar o estrangeiro como o texto em si mesmo”. Texto e leitor se confrontariam, a “individualidade do leitor passa para o primeiro plano”. Há aí uma crença em uma individualidade que passa para o primeiro plano para poder realizar escolhas, o que me parece estranho dentro de uma perspectiva psicanalítica, ou até mesmo em uma reflexão sobre o que constituiria a experiência estética. Venho pensando o quanto a experiência estética põe em questão exatamente as fronteiras entre o Eu e o  não Eu, na linha desenvolvida por Marion Milner, a partir de Berenson. A vivência estética pressuporia uma fusão com o mundo, próxima da experiência religiosa, e da qual sairíamos transformados.

 

É verdade, como aponta Luiz Costa Lima em sua “Nota Introdutória”, que a autora não usou da literatura para ilustrar qualquer conceito psicanalítico. A literatura é “matéria viva” – usando termos de Costa Lima – “apta para o pensamento…”. Logo a seguir Costa Lima fala de “inter-relação entre o corpus de uma ciência – no sentido amplo de termo – e a literatura…”. Sabemos quão problemático é inserir a psicanálise no campo da ciência, mesmo que “no sentido amplo do termo”. A psicanálise vem delimitando um campo epistemológico próprio, no qual é preciso abandonar os parâmetros tanto da arte como da ciência.

 

Ao desenvolver a noção de “autorreflexibilidade” da linguagem à procura de uma delimitação clara entre vida e ficção, entre o real e o ficcional, Giovanna parece ainda impregnada da busca de algum critério mais cientificista para nortear suas indagações: “…a ficção reflexiva tomará por objeto a relação entre os mundos ‘real’ e ‘ficcional’, ou seja, será uma metaficção: uma crítica sob forma de ficção…”. Na obra reflexiva o leitor buscaria “uma compreensão do fazedor de uma história. Os autores tornam-se a problemas a serem resolvidos, e os personagens, elementos que evidenciam a sensibilidade do autor. (…) Escrever torna-se expressão do sujeito. Nessa medida, escrita reflexiva/metaficcional nos proporciona um contínuo exame do autor e sua obra”. Uma posição como essa corre o sério risco de cair em um psicologismo, o que Giovanna quer evitar, conforme acentua no “Posfácio”, ao afirmar que não quer interpretar conto ou autor, caindo em uma “psicanálise aplicada”. Mas, ao delimitar seu  campo de trabalho como sendo o  da retórica na sua relação com a ficção, escolheu uma crítica literária que privilegia o papel do leitor no ato de recepção. Se o que está em questão na ficção reflexiva/metaficcional são os “fundamentos do processo de leitura”, o desvendamento dos caminhos de constituição de diferentes mundos, pode-se cair facilmente em uma “psicanálise aplicada”, o que Giovanna consegue evitar com mestria.

 

Giovanna quer encontrar um conceito de identidade em Borges, para pensar “as conexões significativas entre o conceito de duplo e o mundo de ficção”. Quando Isidoro Vegh, um dos psicanalistas que dialogou com Borges no encontro supracitado, pergunta como escolher entre a prosa ou a poesia quando lhe aparece um tema, a resposta surpreende: “…procuro ser passivo, aceitar, agradecer, experimentar as possibilidades. Muitas vezes meu ponto de partida é um sonho”. A seguir lembra um artigo de Stevenson onde conta que a fábula de Jekyll e Hyde lhe foi dada por um sonho. Citando Borges falando de Stevenson: “Ele usava muito dessa ideia de que um homem é muitos, da multiplicidade ou pluralidade de todo ser humano”. A seguir relata: “No caso de Coleridge, segundo ele teve um sonho: no ano de 1798 sonhou com a construção de um palácio, sonhou com um imperador chinês que ordenava a construção do palácio, ouviu uma música e soube, como se sabem as coisas nos sonhos, que essa música estava construindo o palácio; então ouviu uma palavra… essas palavras foram o poema “Kublai Khan”, que ele escreveu depois. Esse poema teve umas sessenta ou setenta linhas, ele estava escrevendo quando chegou um vizinho que o interrompeu, e então não pôde recordar a resto do sonho. Durante muito tempo se acreditou que Coleridge começara o poema e não sabia como terminá-lo e inventou essa fábula; mas, mais tarde – e isto Coleridge não o soube – descobriu-se que esse imperador, Kublai Khan, aquele que recebeu Marco Polo, fizera construir esse palácio (que logo o tempo se encarregou de destruir) segundo um plano que lhe foi dado em um sonho…”.

 

O poema que introduz o segundo capítulo, “Soy”, mostra como é a própria noção de identidade que fica em questão. Giovanna cita Borges: “Quanto ao mais estou destinado a perder-me, definitivamente, e apenas algum instante de mim poderá sobreviver no outro”. Giovanna conclui que “dessa maneira Borges deixa de existir, e é finalmente nada”. Por que nada? Nada ou muitos?

Será que Borges está preocupado com a identidade ou com a desconstrução de qualquer identidade? Se para ele identidade é temporalidade, identidade é fluxo, é duração. Se para Borges a individualidade é uma mera ilusão, a noção de identidade fica suspensa, necessariamente.

 

É sensível e delicada a análise que a autora faz do conto “O outro”, escolhido para validar sua exposição. Mostra sua paixão pela literatura e seu cuidado em não utilizar de forma meramente ilustrativa os conceitos psicanalíticos. O conto é um diálogo entre o Jovem e o Velho Borges. Ou seja, é um conto sobre a memória, sobre o a posteriori. Mas Giovanna preferiu falar do duplo e afirmar que “O sujeito que costuma estar ciente, intelectual e emocionalmente, do seu duplo como parte integrante de si mesmo sustenta a ideia de que um homem é a todo momento todos os homens”. Giovanna reconhece que há aí a negação de uma identidade individual, mas que ocorreria a “redução de todos os indivíduos a uma identidade geral que contém todos e está ao mesmo tempo contida em cada indivíduo”. Parece difícil abandonar o conceito de identidade…

 

No último capítulo a autora se debruça sobre o conceito do unheimlich, “O estranho”, publicado por Freud em 1919, quando reflete sobre a experiência do duplo. Para Giovanna, quem encontra o duplo é despossuído de um mundo interior, despossuído “daquilo que delimita, assinala, e que constitui um dentro e um fora (…). O duplo, esse outro, seria sempre “uma projeção mimética do mesmo”, ou seja, é repetição, é morte. Mas, “é no movimento de ir e vir (…) que encontramos a possibilidade de constituição de um dentro e de um fora separados”. Ir e vir em permanente movimento de desmanchamento e recriação. Quem disse que em algum momento de nossas vidas temos essa clara noção de um dentro e um fora? A experiência estética se constituiria mesmo nesse espaço transicional, tal como Winnicott o pensou, ou seja, aquilo que se dá como dentro e fora simultaneamente.

 

Giovanna mostra um profundo conhecimento da teoria literária e um grande rigor na utilização dos conceitos psicanalíticos. Os problemas que aqui estão apontados mostram a riqueza do tema e os muitos caminhos que, esperamos, Giovanna continuará percorrendo, pois sua formação em literatura lhe confere uma especificidade nas suas reflexões no âmbito da psicanálise.