O Compromisso narra a história de vida de uma operária sob um regime opressor
Publicado no caderno Cultura – O Estado de São Paulo – Pág. D4
25 de abril de 2004
Giovanna Bartucci
O que fazer quando o silêncio torna-se imperioso? “Muitas coisas pioram quando são faladas. Eu me habituei a me calar a tempo, e mesmo assim em geral é tarde demais…”, explicita a operária de confecção, personagem em torno da qual Herta Müller constrói o romance O compromisso (Globo, 204 págs.). Obra ganhadora do European Literature Prize, e primeiro romance da escritora romena Herta Müller (1953-) lançado recentemente no Brasil, O compromisso retrata, sem banalidades, a vida sob um regime opressor.
Atualmente vivendo em Berlim em decorrência de sua recusa em colaborar com o Serviço Secreto romeno, Müller é reconhecida no meio literário como uma importante escritora de língua alemã. Autora prolífica, ganhadora de diversos prêmios literários, já tendo publicado poemas, contos, romances e ensaios, a sua obra retrata, fundamentalmente, a degradação humana decorrente de regimes autoritários. O compromisso é, assim, um bom exemplo desse interesse.
E, de fato, o que essa narrativa – repleta de imagens poéticas e, no entanto, profundamente contida – faz é explicitar o quanto “era mais fácil lidar com a falta de sentido do que com a falta de objetivo…”: “então, em vez de mentiras eu agora invento objetivos na cidade”, clarifica a narradora. É verdade, se “era mais fácil esconder a falta de sentido naquela época”, é porque a narradora lança mão de sua capacidade de dar vida a todas as coisas.
Assim, ainda que o seu universo se complete com as recordações de sua própria infância, as infidelidades do pai, a deportação dos avós causada pela denúncia de seu marido, a sua vida é a vida de outros: um botão de madrepérola, um bonde, formigas, flocos de neve, os beijos de Albu, o major do Serviço Secreto para quem ela deve se apresentar quando convocada. E ainda, o velho de chapéu de palha, o sapateiro, o condutor, o pai com a criança, o primeiro casamento que quase culminou em homicídio, a amiga Lili, o asssédio sexual de Nelu, as angústias de Paul, o companheiro alcoolista.
E, no entanto, ainda que esta operária de fábrica não queira pensar em coisa nenhuma na medida em que, no regime opressor no qual vive, “não é coisa nenhuma além de uma pessoa que foi convocada”, ela está decidida a sobreviver: de fato, “eu pensava sobre as peças que a vida prega, e no caminho de casa (…) repassei todas as maneiras de se cansar do mundo”: “ser convocado e jamais enlouquecer como Paul e eu”.
Assim, se – como a vida – “o amor não se mantém se fica parado”, a sobrevivência é fundamental. Não é à toa, então, que ela conta muitas coisas: “toco de cigarro, árvores, sarrafos de cerca, nuvens ou lajes entre um poste de telégrafo e outro, as janelas de manhã até a parada do bonde (…)”. Ou então, anota “naquele caderno tudo que Albu (lhe) diz ao beijar a (sua) mão, ou (mesmo) quantos paralelepípedos (…) tem de um ponto a outro”. E assim, por meio da subversão de uma ordem opressora, mantém-se, ainda que por um fio, o mundo em ordem.