Jacques Hassoun, autor francês de origem egípcia, diagnosticou um dos males da época.
Publicado no caderno Cultura, O Estado de São Paulo – Pág. D9
06 de abril de 2003
Giovanna Bartucci
Nascido em Alexandria, Egito, em 1936, em uma família judia religiosa, Jacques Hassoun (1936-1999) esteve, desde sempre, interessado em tudo o que dissesse respeito à temática referente à história judaica contemporânea. Pesquisador incessante, seu livro Histoire des Juifs du Nil (Minerve, 1990) é título de referência sobre os judeus egípcios, na primeira metade do século. De nacionalidade francesa, desde os 15 anos envolvido com o marxismo, aos 18 anos, Hassoun deixa o Egito e parte para a França, como conseqüência de questões políticas. Na França, inicia seus estudos em medicina, especializando-se em psiquitria e, em maio de 1968, é o primeiro “diretor médico” do Centre Médico-Psycho-Pédagogique d’Aubervilliers a fazer com que uma equipe de psicólogos passe a atuar em créches. Posteriormente, torna-se psicanalista e recusa-se, firmemente, a dissociar marxismo e psicanálise, determinado que estava a demonstrar que era possível conjugar os dois. Professor de psicanálise no Departamento de Psicologia da Universidade de Vincennes, de 1969 a 1977, em 1975 faz sua primeira tentativa de ingresso na Ecole Freudienne de Paris, fundada por Jacques Lacan em 1964, sendo aceito somente 1978. Após a dissolução da Ecole Freudienne de Paris, em 1980, e morte de Lacan, em setembro de 1981, Hassoun participa, em 1982, da fundação do Cercle Freudien de Paris, sendo seu presidente de 1987 a 1990. Em abril de 1999, Jacques Hassoun falece em decorrência de um tumor cerebral.
Identidade
Com efeito, autor de mais de dez títulos, é em torno da paixão e da melancolia que circula a obra de Hassoun, que tem em suas interrogações sobre o exílo e os elos entre língua materna e identidade, seus fundamentos. Tendo considerado anteriormente em L’Exil de la langue: fragments de langue maternelle (Payot, 1979), a melancolia como o que evoca o “luto primeiro” – ou seja, a idéia de que o objeto (a mãe) que deveria ter, um dia, miticamente trazido uma primeira satisfação está perdido para sempre –, o autor retorna ao tema em A Crueldade Melancólica (176 págs.), lançado pela Civilização Brasileira.
Assim, entendendo este luto primeiro como um “momento fundador do sujeito”, constitutivo do ser, para Hassoun o “melancólico lidou com uma mãe que não pôde acompanhá-lo no desmame” (o luto primeiro). Em outras palavras, na medida em que os critérios mais decisivos para distinguir a melancolia do luto dizem respeito à relação do sujeito com o objeto perdido, ainda que o enlutado possa exibir o mesmo estado de prostração e a mesma recusa do mundo que o melancólico, a diferença residiria em que o enlutado vê este estado ter fim. O melancólico, no entanto, viveria num perpétuo estado de luto, a melancolia assemelhando-se, grosso modo, a um luto sem fim.
É aqui, entretanto, que reside a originalidade do pensamento de Hassoun. Sua hipótese é a de que o melancólico é aquele que não conheceu uma experiência de perda e de um primeiro luto subjetivante – pela falta de nomeação e de designação possível desta perda por parte da mãe. Dito de outra forma, o desmame supõe que a mãe seja capaz de entender que, no aleitamento, é ela quem “perde o seio” – ou seja, supõe que ela seja capaz de transmitir à criança uma experiência de perda. Consequentemente, o “desmame” da mãe tornaria possível o desmame da criança. É nessa medida que essa forma particular de melancolia vê desencadear-se a crueldade e instalar-se a marginalidade, uma vez que essa colagem do sujeito com o objeto implicaria o puro ódio e a tentativa de destruição do mesmo. De fato, para Hassoun, o “melancólico é esse objeto não–separado que não chegou a ser”. É compreensível, então, porque o sujeito encontra-se submetido à necessidade de assassinato simbólico daqueles que ama.
É nesse sentido que A Crueldade Melancólica constitui-se como um daqueles títulos que poderá interessar a psicanalistas, mas também a leigos que desejem pensar as questões relativas à constitutição da subjetividade, na contemporaneidade. Se o “pós-moderno” é mesmo o lugar da ausência de garantias, a globalização – tendo produzido o enfraquecimento de fronteiras, de distinções entre culturas, aliado a uma mobilidade econômica, geográfica e cultural – tem trazido consigo um contingente de excluídos cuja demanda por reconhecimento é cada vez mais violenta. Afinal, se o homem moderno está perdendo a sua alma, mas não se dá conta disso, uma vez que é precisamente o aparelho psíquico que registra as representações e seus valores significantes para o sujeito que se encontra “avariado,” insistir na experiência da perda, da falta, na castração simbólica como condição de desejo e de prazer, implica – fundamentalmente – um trabalho anterior: constitituir limites entre interioridade e exterioridade, entre sujeito e objeto, entre o sujeito e o outro, possibilitando aos nossos analisandos a simbolização de “traumas insustentáveis” – o assassinato simbólico do “objeto”, constituindo-o, afinal, em objeto perdido. Esta, sim, condição indispensável para que ocorra a liberdade psíquica do sujeito.