Livro analisa histeria masculina a partir de figuras paradigmáticas, como Dom Juan, o eterno conquistador
Publicado no caderno IDÉIAS – Jornal do Brasil – Pag. 07
02 de fevereiro de 2002
Giovanna Bartucci
“É justificado que os feiticeiros, os vagabundos, os marginais, os histéricos – homens ou mulheres –, e por que não os psicanalistas, sejam vistos pela maioria como seres (…) habitados por uma maldade dita diabólica que legitima a priori o ódio que suscitam e de que se defedem, ou se vingam, quase sempre endossando as armas da vítima? O fato de a História vir ocasionalmente dar consistência a essa roupagem, com perseguições bem reais, vela a questão sem no entanto conseguir fazer com que desapareça”. Assim, “como é possível não ser errante? Como é possível, hoje mais do que ontem, continuar a ignorar que não estamos ali onde agimos, que não estamos ali onde pensamos, que ali onde estamos não pensamos?”
Recentemente lançado pela Companhia de Freud, será esta a questão que Os errantes da carne: estudos sobre a histeria masculina, de Jean-Pierre Winter, pretende responder. Por meio das análises de textos fundadores de nosso imaginário contemporâneo, tais como a Bíblia, Shakespeare, Cervantes, pelos surpreendentes avatares do marranismo e, ainda, dialogando com Espinosa, Charcot, Freud e Lacan, Jean-Pierre Winter parece querer retirar do bojo mesmo da História a figura mítica que dará à histeria masculina corpo, carne.
Don Juan será, assim, o paradigma do ator itinerante, do artista maldito, do judeu marrano, do filósofo excomungado – enfim, a figura da histeria masculina e da errância. Sua lucidez, no entanto – sua “recusa de ser o tolo enganado pelas máscaras”, como diz Winter –, lhe custará caro: a errância sua é seu pagamento.
Hieróglifos
E não há porque não nos adiantarmos: como destaca Winter, “o histérico é aquele que diz ao outro: Encarnas uma verdade de que nada queres saber e que recalcas. Para te fazer sabê-la, pagarei em meu corpo e te obrigarei a decifrar meu corpo como tiveste que decifrar os hieróglifos gravados nas pirâmides. Mas o que encontrarás não é o saber que me habita, mas o saber que recusas. É por isso que o histérico erra de carne em carne, tal Dom Juan a pular de casamento em casamento, de Ana a Elvira, de Elvira a Zerline, revelando a cada uma delas a inconsistência daquilo a que elas mais pretendem se apegar”.
Pois sim, se em sua origem, a histeria pareceria ter sido uma questão de mulheres, duvida-se se, na atualidade, ainda se trate de uma “neurose” tal como descrita nos primeiros compêndios de psiquiatria. Tendo o D.S.M. III (Diagnostical and Statistical Manual of Mental Disorders) conservado unicamente a noção de sintoma de conversão, o lento desaparecimento dos famosos sintomas das histéricas de Charcot, na Salpêtrière (1870-1893), nos coloca a questão de se a histeria não se deslocou para o campo social.
Útero
Assim é que, no antigo Egito, perturbações diversas – tais como sintomas de convulsão, de bolo na garganta, de paralisia – eram atribuídas a deslocamentos do útero (hysteria) para a parte superior do corpo. Atraí-lo para baixo por meio de odores agradáveis aplicados sobre o sexo da mulher, ou repelí-lo pela inalação de odores desagradáveis, constituía-se, durante toda a Antiguidade, no tratamento da “sufocação da matriz” (a histeria). Distinguindo-se do homem pela característica singular de conter em seu ventre um animal sem alma (o útero), a mulher não era senão o produto de transformação dos “homens mais vis” em fêmeas.
É verdade, ainda que análises contemporâneas atestem que a constituição atual do corpo biológico da mulher parece estar diretamente associada a este corpo e representações que se tem dele, estudos de ordem histórica realizados na década de 1990, dedicam-se a comprovar a hipótese do modelo de sexo único (“carne única”) – por meio do qual o corpo da mulher é conhecido como uma versão menos importante do corpo do homem. Mesmo quando da entrada em evidência, durante o Iluminismo, do modelo de dois sexos (“duas carnes”), o corpo da mulher era, ainda assim, o oposto incomensurável do corpo do homem.
Menos mal para aquilo que nos concerne aqui: afinal, “o que a ideia de uma histeria masculina vai introduzir é que esse buraco, esse oco (a presença ou a ausência do útero), esse vazio no espírito não precisa de modo algum apoiar-se num vazio real ou num oco real no corpo”, observa Winter. Assim, se aceitarmos situar o problema não mais no mero campo, eminentemente redutor, da anatomia, “a questão muda e se torna aquela de uma sensibilidade particular a uma falta, que não é a ausência real do pênis, mas falta imaginária ou falta simbólica no campo da representação”.
Do ponto de vista clínico a histeria é “uma estratégia defensiva que visa desvelar a si mesmo sua relação com castração”. Não é à toa que “essa errância, durante muito tempo assimilada em psiquiatria à grande mobilidade dos humores e dos afetos nas mulheres, encontra sua expressão metafórica no homem no nível de sua conduta, de sua instabilidade profissional, amorosa ou geográfica”.
Fracassos
Torna-se simples constatar, a partir daí, que homens ou mulheres estão submetidos ao mesmo regime. O histérico inscreverá, então, conforme o caso “em seu corpo ou em sua conduta, os efeitos dos fracassos simbólicos”. Pois sim, se Dom Juan engana-se ao imaginar que as mulheres são a causa de seu desejo, será mesmo porque ele é a causa do desejo delas, fingindo constantemente ser o objeto deste desejo. Por aí, dirá Winter, Dom Juan “se aproxima do que poderíamos chamar a posição do judeu para o Ocidente”. E, talvez, esteja aqui a originalidade do ensaio do autor: “a posição do judeu no sentido teológico ou histórico da palavra, no sentido de que este último representa justamente este objeto causa para o Ocidente. (…) O judeu é um enigma; para o judeu primeiramente e para o não-judeu em seguida, e este enigma é produtor de saber. (…) Para o judeu foi grande a tentação de reunir em si o enigma e o leitor deste enigma, de ser a um só tempo a esfinge e Édipo. Esta tentação teve um avatar histórico: o marranismo”.
De acordo com Winter os marranos, judeus tornados cristãos que, por não terem outra escolha a não ser a de judaizar em segredo, se acharam na situação de sacrificar no judaísmo o que, por um lado, não lhes parecia essencial e, por outro, o que, vale dizer, precisava ser disfarçado. Os marranos foram, por isso, fabulosos derivadores de ritos, valorosos deslocadores de palavras, conquistadores dos buracos negros das ideologias de seu tempo. Assim é que na concepção do autor, o marranismo é “uma das formas menos contestáveis da existência judia; assim entendido de um modo algo apologético, os judeus, longe de sofrerem com a perseguição, disso só deveriam sentir-se lisonjeados. (…) Mas é fácil ler neste discuro os próprios motivos dessa perseguição. Não porque os judeus diriam o verdadeiro sobre o desejo que habita o homem, mas porque este verdadeiro,admitindo-se que o seja, eles o dizem a quem nada lhes pediu e que nada querem saber disso”.
Não é à toa que, nesse sentido, a questão judia é encontrada no cerne de um encaminhamento sobre a histeria, uma vez que – de acordo com Winter –, para o Ocidente, “a questão colocada pela existência do judaismo está no cruzamento das duas questões encontradas na histeria, as da intricação do traumatismo e da memória”. Assim é que, se o judaismo não se reduz aqui à religião judaica, nem tão pouco a neurose histérica à histeria, como é possível não ser errante? Como é possível, parafraseando Winter, continuar a ignorar que não estamos ali onde agimos, e que ali mesmo onde estamos não pensamos?