A literatura no divã da psicanálise

Literatura

Ensaios investigam a subjetividade moderna a partir da vida e obra de autores como Edgar Allan Poe e Sylvia Plath

Publicado no caderno IDEIAS – Jornal do Brasil – Pág.07
23 de fevereiro de 2002

Por Cláudia Nina
Subdiretora de IDEIAS

 

Por que nomes importantes da literatura, como Anne Sexton, Sylvia Plath, Primo Levi,Virginia Woolf, Ana Cristina César e uma série de outros talentos que se suicidaram durante um período de intensa produtividade literária, não conseguiram fazer com que o exercício criativo impedisse os impulsos ao próprio aniquietamento? Existe, afinal, alguma relação possível entre as histórias de autoextermínio dos escritores e os limites da literatura que produziram? E mais: que mistérios há por trás de obras como “O gato preto”, de Edgar Allan Poe, e quais são os alinhavos entre a literatura fantástica e a psicanálise? Qual a relação entre o romance e os neuróticos modernos?

 

Tais perguntas compõem apenas uma mínima parte dos muitos questionamentos que recheiam os 14 ensaios  de Psicanálise, literatura e estética de subjetivação. Organizado por Giovanna Bartucci, o livro reúne psicanalistas e estudiosos do longo diálogo entre os divãs e as obras literárias, como Ana Cecília Carvalho, Eneida Maria de Souza, Joel Birman, Maria Rita Kehl, Luiz Costa Lima, entre outros. Em abordagens complexas e instigantes, eles transformam o leitor num investigador, uma espécie de detetive, sondando os mistérios da escrita e tentando refazer a travessia da criação – sempre solitária, um tanto exílica – do autor rumo à sua obra.

 

Como se explica na abertura do livro, as relações entre a psicanálise e as artes são bem antigas e inúmeras são as possibilidades interdisciplinares. E a literatura é, desde sempre, objeto que desperta a curiosidade científica dos psicanalistas para melhor compreenderem o sujeito moderno a partir do texto.

 

Neuróticos

Em um dos melhores ensaios do livro, a psicanalista e poeta Maria Rita Kehl analisa as relações entre a subjetividade moderna e o leitor do romance. A partir de Walter Benjamin, que diferencia o leitor (ou ouvinte) de uma narrativa – que está sempre acompanhado – do leitor do romance – que está só –, ela questiona: “Seremos nós, neuróticos modernos, herdeiros daqueles ‘sujeitos literários’ que foram os autores de romances? Terá a tradição do romance se enraizado de tal modo na cultura ocidental a ponto de ter produzido a formatação através da qual representamos nossas histórias de vida?”.

 

Num texto em que as perguntas conduzem o leitor a questionar se a própria vida não seria a construção de  um romance, devido à estrutura das histórias pessoais, Maria Rita analisa ainda o surgimento do romance realista a partir de fins do século 18 na Europa e os seus efeitos sobre o sujeitos, em especial o público feminino. Ela lembra que, não por acaso, os grandes personagens dramáticos do romance oitocentista foram justamente as mulheres, “vozes dissonantes emergindo em um mundo onde se esperava que permanecessem em silêncio”.

 

Citando Peter Gay, a psicanalista diz que, embora não tenham sido os românticos que inventaram o “eu” moderno, eles certamente deixaram uma herança importante para nosso século. E o desenvolvimento do gênero trouxe obras que poderiam ser consideradas construtivas desse sujeito nas páginas de expoentes do romance realista, como Balzac, Zola, Defoe, Stendhal, Flaubert, Charllote Brönté, Eça de Queirós, Jane Austen, Dickens, Machado de Assis, Tolstoi, entre outros.

 

Caminhos

Uma das grandes questões suscitadas a partir do mundo criado por esses autores é saber se um escritor como Balzac, por exemplo, estaria retratando a verdade subjetiva  de suas leitoras, ou se estaria, num caminho inverso, “produzindo” a subjetividade feminina. E aí, a pergunta: “Seria função da psicanálise perspectivar a literatura ou, contrário, devemos nós, psicanalistas, nos debruçar sobre a literatura para compreender melhor nosso objeto, o sujeito moderno?”. As perguntas são complexas e muitas permanecem em aberto.

 

A inocência da literatura, desde Freud, foi colocada sob suspeita num caminho sem volta. O psicanalista que investiga o texto e desvenda os conteúdos soterrados em seus “escombros” age, como escreve Noemi Moritz Kon, “como um arqueólogo – metáfora largamente utilizada na obra freudiana para revelar o trabalho psicanalítico”. É com este espírito investigativo que o objeto em questão neste ensaio de Noemi – a obra “O gato preto” – é analisado numa perspectiva que vai da psicanálise à literatura fantástica.

 

A estranha enigmática, história do gato que assombrava o homem, levando-o à loucura e ao assassinato da mulher, é, como escreve Noemi, um ótimo exemplo do contexto literário da segunda metade do século 19 e do “caldeirão no qual foi também gerada a teoria freudiana”.

 

Limites

Em um dos ensaios mais interessantes de Psicanálise, literatura e estética de subjetivação, Ana Cecília Carvalho analisa o tema “Pulsão e simbolização: limites da escrita”, em que várias questões são levantadas, relacionando a escrita dos autores suicidas e as referências autobiográficas, às quais o leitor recorre inevitavelmente em busca de “pistas” que possam explicar, se isso é possível, os caminhos densos que levam os escritores à autodestruição.

 

A análise da melancólica poesia de Sylvia Plath ganha destaque nos ecos de destrutividade de suas obras. Como escreve Ana Cecília: “Embora a autora escrevesse para ‘sair do buraco’, como disse em uma carta para sua mãe, sua escrita literária, sobretudo a do final da vida, nutriu-se, praticamente sem distância, da dor de suas próprias experiências”. Em outras palavras, uma profícua, embora cruel, combinação: o triunfo da escrita e a derrota do autor.

 

É claro que ligar as pontas entre vida e obra é sempre perigoso, mas não deixa de ser também tentador e, de certa forma, inevitável. O que se faz talvez impossível é desvendar mistérios maiores, tais como os limites da escrita e as razões pelas quais os autores suicidas não conseguiram superar os impulsos autodestrutivos através da criatividade de seu ofício literário.

 

A questão é realmente complexa e remonta a Platão – e também a Derrida – na descrição do ato de escrever como phármacon: remédio e ao mesmo tempo veneno.

 

Cartas

O volume ainda se desdobra em muitas outras vertentes, sem deixar de lado as cartas. João Frayze-Pereira tem como objeto de estudo as cartas dos modernistas Mário de Andrade e Portinari, a partir das quais analisa os humores, a personalidade de cada um e a “troca de fraquezas” que certamente abrem um amplo terreno de estudo para investigações nas áreas de literatura, psicologia e psicanálise.

 

O último ensaio é de Giovanna Bartucci, que fala sobre a escritura de Jorge Luis Borges, abordando mais especificamente a questão do duplo e a técnica borgiana de confundir os limites entre a realidade e as abstrações. Um jogo de espelhos, que instaura a poética da ambiguidade e do desdobramento – um “prato cheio”, saboroso aos olhos de psicanalistas de todos os matizes, que veem na literatura um borbulhante caldo de estudos e reflexões.

 

É isto, afinal, que se tem neste livro de ensaios: o momento em que a literatura do século 20 deita-se no divã e, a partir daí, tudo pode acontecer numa imprevisível arqueologia dos sujeitos e das obras.