A identidade serviçal no corpo feminino

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Perfil das mulheres não está sendo condicionado por suas conquistas, mas pela tríade que reune beleza, juventude e saúde

Publicado no caderno Cultura – ZERO HORA – Pág. 07
09 de março de 2002

Giovanna Bartucci

Tema de capa de inúmeras revistas semanais, o corpo da mulher e a sexualidade feminina são também a temática de uma profusão de lançamentos de livros. Títulos tais como Corpo a corpo com a mulher: pequena história das transformações do corpo feminino no Brasil, de Mary Del Priore (Senac), Erótica: um estudo psicanalítico da sexualidade feminina, de Raquel Zak Goldstein (Criação Humana), Ninfomania: história, de Carol Groneman (Imago), O sexo da mulher, de Gérard Zwang (Unesp) e, muito recentemente, guias práticos de orientação sexual para mulheres aparentam ser testemunho de que a constituição atual do corpo biológico da mulher parece estar diretamente associada a este mesmo corpo e as representações que se tem dele.

A questão é que se, por um lado, algumas dessas publicações visam, como atesta Gérard Zwang, “fazer ver” aos leitores o sexo da mulher, por outro, há o desejo de, por meio da discussão sobre a natureza e o lugar da mulher, aproximar-se da questão da sexualidade feminina. Assim, enquanto Zwang e outros autores concebem a zona erógena principal da mulher como correspondente a “uma faixa cutâneo-mucosa contínua, que se desdobra como um leque desde o nascimento da fenda até o fundo da vagina, ocupando o clitóris, a região perimeática, a parede vaginal anterior e o fundo de saco posterior”, o clitóris é, agora, “o inseparável educador da vagina, seu incitador ao prazer, seu vizinho de porta e seu melhor amigo”.

No entanto, se um autor como Zwang entende que “a função erótica está inscrita em nossos genes”, tanto o trabalho de Del Priore acerca das transformações do corpo feminino no Brasil quanto o de Groneman – sobre o tema da ninfomania e o que este poderia revelar sobre as atitudes em relação à sexualidade feminina nos EUA durante os últimos 200 anos – sugerem que a cultura molda nossa compreensão do comportamento e desejo sexual feminino, agora e no passado. Assim, enquanto Groneman tenta oferecer respostas para perguntas tais como “quanto sexo é demais?”, “quanto não é suficiente?”, “há uma quantidade saudável, normal e natural de sexo?”, “e quem decide?”, Del Priore ocupa-se em recuperar a história das mulheres por meio da história de seus corpos. Segundo a autora, na atualidade, a identidade do corpo feminino corresponderia ao equilíbrio entre a tríade beleza-saúde-juventude. De forma conclusiva, Del Priore é veemente ao afirmar que “no início do século XXI, somos todas obrigadas a nos colocar a serviço de nossos próprios corpos. Isso é, sem dúvida, uma outra forma de subordinação”. Diferentemente do passado, “hoje o algoz não tem rosto”, dirá a autora. “É a mídia. São os catazes da rua. O bombardeio de imagens na televisão… A identidade corporal feminina está sendo condicionada não pelas conquistas da mulher no mundo privado ou público, mas por mecanismos de ajuste obrigatório à tríade beleza-juventude-saúde”.

Assim, se a estigmatização de gordos é produto do fosso cada vez mais profundo entre identidade social e a identidade virtual acima mencionada, a fotografia, o filme, a televisão e o espelho das academias dão à mulher moderna o conhecimento objetivo de sua própria imagem. Mas, também, a forma subjetiva que ela deve ter aos olhos de seus semelhantes.

Parece ser aqui que mora o perigo: se o que está em jogo na atualidade é a constituição do corpo da mulher como objeto de um desejo fetichista, há que se ter cuidado para não sobrepor seu corpo anatômico ao seu corpo erógeno. É nessa medida que, para a psicanálise, o campo do psicossexual é irredutível a dados biológicos, não sendo o corpo nem o somático, nem tampouco o organismo, ultrapassando, assim, em muito, o registro biológico da vida, marcado que está este corpo pelas pulsões. Não é à toa que psicanalistas pós-freudianos supõem que o fetiche tem como propósito encobrir a falta e o vazio que marcam qualquer sujeito na estrutura do seu desejo. Se na atualidade o ideal vigente valoriza um corpo belo-jovem-saudável, ou seja, um presente fugaz e eterno, sem passado e sem memória, não será difícil conceber este corpo da mulher como um atestado da plenitude almejada. Tais corpos parecem dizer: “Vejam, sou-já-eu-mesma-plenamente”.

No entanto, se a constituição deste corpo e a nossa possível compreensão da sexualidade feminina são moldadas entre este corpo e as representações que se tem dele, é importante destacar que o acesso a sexualidade não tem a ver somente com a disposição anatômica de cada sujeito. Evolução que nada tem de natural e precisa seguir desvios paradoxais, há a possibilidade de se reconstruir as etapas da evolução psíquica que conduz a criança do sexo anatômico feminino, por exemplo, à posição subjetiva que a torna apta a satisfazer suas funções biológicas. De fato, não se nasce mulher, torna-se, afinal, mulher.