Publicado no caderno Cultura – O Estado de São Paulo – Pág. D12
04 de abril de 2004
Giovanna Bartucci
Jacques Lacan (1901-1981) deu ao pensamento freudiano algo totalmente inédito, na medida em que reintelectualizou todo o pensamento freudiano num debate filosófico sobre o ser, a morte, sobre o sujeito tal como o havia pensado a filosofia alemã.
Com efeito, se deixarmos nossas diferenças teórico-clínicas de lado, veremos que as considerações acima, elaboradas por Elizabeth Roudinesco – uma das mais importantes historiadoras da psicanálise na atualidade –, são absolutamente pertinentes. Não encontramos, de fato, as características destacadas por Roudinesco em relação ao pensamento de Lacan em outros grandes pensadores do freudismo.
Entretanto, se o pensamento de Lacan ainda é considerado subversivo nos tempos que correm, na medida em que Lacan é o último dos grandes intérpretes do freudismo, Lacan é também um paradoxo, já que como homem era, atestadamente, um conservador.
De acordo com Roudinesco que foi, de 1969 a 1980, membro da École Freudienne de Paris – fundada por Jacques Lacan em 1964 e vindo a ser dissolvida em 1980 –, Lacan não só era descrente no que se refere ao ideal revolucionário da Revolução Francesa (1789), como também trazia consigo uma desilusão permanente.
O fato é que após ter se debruçado sobre o século 18, a historiadora considera que há, em Lacan, algo muito mais transgressivo que subversivo. Um “libertino” do século 18, suas referências pessoais eram as do século 19 e a sua família uma família burguesa do século 19 contra a qual ele reagiu, tornando-se o personagem transgressivo que conhecemos hoje.
Será este Lacan, então, aquele com o qual estaremos “face a face”, ao nos debruçarmos sobre os seus Outros Escritos (tradução de Vera Ribeiro, 608 páginas), recentemente lançado pela Jorge Zahar.
Se a ambivalência de Lacan quanto à passagem da (sua) fala à escrita é notória, a efetivação da publicação de sua obra, para além da circulação do âmbito restrito das instituições e revistas freudianas, foi um trabalho realizado por François Wahl, ex-paciente de Lacan de 1954 à primavera de 1961 e seu editor nas Éditions Seuil, a partir de 1964.
Na mesma medida em que, enquanto seu analista, Lacan não intervinha mas escutava – “Eu discutia ao mesmo tempo minhas relações com Platão e meus problemas de vida privada”–, Wahl reunia as qualidades necessárias para vencer as fobias de Lacan e possibilitar ao mestre dar à luz a sua obra escrita.
Tendo sido simultaneamente um analisando, um ouvinte de seus seminários e um interlocutor intelectual capaz de trabalhar a escrita dos “seus” autores de forma apaixonada e até a perfeição – ou exaustão –, Wahl jamais simulou reconhecer um talento por razões mercadológicas, ou mesmo publicou uma obra cuja forma e conteúdo recusasse. O fato é que a editora Seuil viria a tornar-se, então, o lugar privilegiado de um lacanismo em expansão.
Consagração – Convertendo-se, então, no diretor da coleção Le Champ Freudien (O Campo Freudiano) em 1964, cujo primeiro título a ser publicado foi um texto da psicanalista Maud Mannoni (1923-1998), Lacan veio a aceitar a reunião e publicação de seus “escritos” somente em 1966.
Com efeito, foi o próprio Lacan aquele a escolher o título de sua obra, tendo como objetivo distinguir a obra escrita da obra falada que continuava a enunciar em seu seminário. O primeiro volume dos Écrits (Escritos, Jorge Zahar) – reunindo ensaios que contêm os princípios que servem de base ao seu sistema de pensamento – chegou, então, às livrarias em 1966, após o árduo trabalho de Wahl e do próprio Lacan. A consagração tão esperada havia, afinal, chegado: 5 mil exemplares vendidos em menos de 15 dias, enquanto milhares de outros seriam ainda vendidos posteriormente.
Assim é que os Outros Escritos – volume que dá continuidade aos Escritos – contêm alguns dos textos à época considerados por François Wahl – o único a efetivamente ocupar a função de editor junto a Lacan – como não sendo “suficientemente lacanianos”, ou mesmo freudianos.
De qualquer forma, temos hoje reunidos, dentre outros, alguns ensaios magníficos como Os Complexos Familiares na Formação do Indivíduo, de 1938, no qual Lacan se antecipava em muito ao que hoje discutimos sob a égide de “o declínio da função paterna na sociedade contemporânea”, Televisão, uma entrevista concedida por Lacan para um programa realizado por Benoît Jacquot em 1973, Lituraterra, de 1971, como também, o Ato de Fundação, proferido por Lacan em 21 de junho de 1964 quando da fundação da sua École Freudienne de Paris, e também a sua Carta de Dissolução, redigida à 5 de janeiro de 1980, quando da dissolução da École.
Se o centenário de Lacan foi a oportunidade para a publicação na França, em 2001, dos Outros Escritos, esse volume reúne em língua portuguesa muito do ineditismo do pensamento de Lacan – ainda que “suficientemente lacaniano ou não”. E com efeito, o que a publicação desse volume faz é trazer à tona o fato de que há – se fizermos jus aos tempos que correm – toda uma geração de analistas que se viu obrigada a fazer o luto da “função do mestre”.
Se, como reconhecem tanto psicanalistas quanto historiadores da psicanálise, vivemos hoje um período em que não há mais mestres – e não só em psicanálise –, em que a questão que se coloca diz respeito à possibilidade de resistência face à renúncia de qualquer plano ou esperança utópicos, defrontamos uma oportunidade ímpar.
De fato, se a noção de utopia pode ser compreendida como motor do desejo, como veículo de transmissão dos ideais, da firme esperança de um bem por vir – na medida exata em que determinada etapa histórica não seja entendida como permanente e que a sociedade humana seja considerada capaz de mudança, o presente não sendo o seu destino final – aqueles que foram, um dia, partícipes primordiais na experiência de legitimar o que lhes acontece sabem, por experiência própria, da “força de subversão” contida na experiência psicanalítica.
E talvez seja tempo de, quem sabe, recuperarmos muito do significado que Freud – e Lacan, por seu lado – atribuíram à experiência psicanalítica.