A fala da imagem

Cinema

Publicado em Percurso. Revista de Psicanálise – Ano XIV – nº 27 – Págs. 173-175
Segundo semestre de 2001

Por Yudith Rosenbaum
Psicóloga e Professora de Literatura Brasileira – FFLCH-USP

 

Em 1895, enquanto os irmãos Auguste e Louis Lumière faziam a primeira projeção cinematográfica da história (o filme chamava-se Chegada do trem na Estação Ciotat) e foi visto por uma plateia de 33 parisienses, ao preço de um franco), em Viena, Freud dedicava-se a seus primeiros escritos psicanalíticos (Projeto para uma psicologia científica e Estudos sobre a histeria). A partir daí, registram-se mais de cem anos de encontros e afinidades entre a arte da imagem em movimento e o saber das palavras que movimentam sujeitos no processo analítico.

 

É desses cruzamentos que trata o livro Psicanálise, cinema e estéticas de subjetivação, dividido em duas partes: a primeira reúne cinco ensaios mais teóricos e abrangentes, abordando as intersecções históricas e conceituais dos dois campos (além dos bastidores da montagem cinematográfica e a situação espectadorial); e a segunda, composta por quatro ensaios, analisa filmes específicos, tentando iluminar as obras escolhidas a partir de certos aspectos da teoria psicanalítica.

 

O livro pertence a uma pequena coleção de três volumes composta ainda por Psicanálise, literatura e estéticas de subjetivação e Psicanálise, arte e estéticas de subjetivação. Como afirma a organizadora Giovanna Bartucci, as obras respondem a uma época “em que se discute, incansavelmente, questões cruciais acerca das novas formas de subjetivação na atualidade” (p. 14).

 

O volume conta com uma diversidade de olhares e referenciais, responsável pela sua riqueza e profundidade. Terapeutas, sociólogos, professores de cinema e psicanalistas tratam o tema com tanto rigor e, ao mesmo tempo, paixão, que ao leitor resta entregar-se à fruição das análises como espectadores de um filme emocionante e inteligente. Talvez faltasse, para compor um corpo completo, a leitura de mais um cineasta (além do primeiro articulista, o historiador, roteirista e crítico de cinema, Jean-Claude Bernardet), já que a visão dos artistas que narram por imagens acaba ocupando lugar de destaque entre os vários textos analíticos do livro.

 

O primeiro deles, um dos mais fluentes da coletânea, é “A subjetividade e as imagens alheias: ressignificação”, de Jean-Claude Bernardet, que comenta o processo de realização dos seus filmes São Paulo, sinfonia e cacofonia” (1995) e “Sobre anos 60” (1999). Tendo sido feitos com material de arquivo e quase nenhuma filmagem adicional, os filmes são pensados pelo autor em torno de uma questão principal: “como ser subjetivo, trabalhando o material dos outros, isto é, um material que provinha de outras subjetividades ou outros pontos de vista, que não meus” (p. 23). Não é preciso dizer que a própria constituição do sujeito psicanalítico passa pela mesma problemática. A noção freudiana de que não há diferença entre a psicologia individual e a psicologia coletiva, uma vez que a subjetividade se fundamenta na alteridade (como mostra o último dos ensaístas do volume, Joel Birman), encontra-se latente sob as frases tão pessoais do crítico-cineasta: “Ao fazer filmes com pedaços de filmes já feitos, penso assumir plenamente esse ser que se vive como um feixe em que são indiscerníveis os gravetos que se poderia considerar pessoais e os que se poderia considerar sociais” (p. 31).

 

O mais instigante no texto de Bernardet é o modo como suas ideias vão reverberando, sem qualquer explicação teórica ou conceitual, concepções psicanalíticas. Várias ideias da obra de Freud vão ganhando concretude na experiência manifesta do trabalho do cineasta. Um exemplo: “Montagem implica rejeição e adoção. Quando uma montadora encontra-se diante de três tomadas de um mesmo plano e escolhe a que lhe parece mais adequada ao filme em produção, no mesmo ato ela condena as duas outras ao lixo. E isso não ocorre apenas ao nível do plano, mas também do fotograma quando, ao acertar o corte na busca de uma passagem mais favorável de um plano a outro, do ritmo que está construindo, ela elimina um, dois, três fotogramas, estes são votados à morte. Esta morte é a condição para que os fotogramas que ficaram vivam” (p. 32). Entre as várias leituras possíveis desse trecho, qualquer relação com o processo da castração como estruturante do psiquismo não parece mera coincidência.

 

Por fim, pode-se ainda desentranhar do texto do autor algo próximo à ideia do après-coup (ou da noção de “temporalidade do a posteriori”, como veremos na “Parte Dois”, no texto da psicanalista Silvia Alonso). Quando Bernardet comenta o aproveitamento de cenas alheias no contexto de seu filme, afirma: “Imagens antigas, às vezes esquecidas, ganham nova vida, se reatualizam, exibem sua potencialidade. (…) Pode-se pensar que, muito diferentemente de uma antologia, esse procedimento, além de, ou mesmo ao construir novos filmes e a subjetividade de seu autor, devolve uma nova vida às imagens que foram tomadas de empréstimo” (p. 41). Impossível não pensar aqui, também, no trabalho ficcional da memória, tal como se lê no texto “Lembranças encobridoras” (1899), de Freud, cuja ideia de construção fragmentária se aproxima do processo de bricolagem de um cineasta.

 

Encontramos uma rede de associações igualmente rica no artigo seguinte, “O cinema e a potência do imaginário”, de Camila Pedral Sampaio. Com precisão e clareza, a autora mostra como as conexões entre o sonho e o cinema (“sonho produzido pela máquina”) podem desembocar em dois tipos contrastantes de análise: se o cinema, como arte do sonho, utiliza a “potência da linguagem poética e visual (…) contra a ordem instituída do mundo” (p. 47), sua vocação é libertária e de realização dos anseios proibidos; mas, a partir do estruturalismo francês nas décadas de 60/70, critica-se o cinema narrativo e ele passa a ser visto como fonte de engano, fascínio ilusório, capturando o sujeito num “imaginário ideologicamente forjado” (p. 48). Cinema: alimento da alma ou fonte de alienação?, pergunta-se a autora. Nessa última acepção, como mostra Sampaio, é notória a influência lacaniana que vê na “fase do espelho” a matriz que torna o cinema tradicional de ficção um “reflexo enganoso de uma alma unitária e produtora de sentido, reflexo no qual o sujeito mesmo resta na ignorância de si” (p. 48).

 

Há, ainda, outra vertente analisada por Sampaio e que pode ser estendida à arte em geral. Trata-se de entender o cinema “como busca da expressão mais fiel possível da realidade, da verdade, do real” (p. 49). A questão da representação (a mimesis aristotélica) aparece aqui sob a “paixão pelo real” como mola propulsora da arte. Essa “obsessão pelo realismo” é a marca registrada do crítico francês André Bazin, referência de vários outros artigos do livro. Para ele, a câmera (não por acaso dita “objetiva”) é mais neutra do que o olho humano e daí sua fidelidade à realidade. É assim que, para Bazin, o cinema constrói um mundo ‘à imagem do real’” (p. 50). Portanto, como conclui a autora, é através do imaginário que, paradoxalmente, o cinema atinge o realismo.

 

A imaginação é convocada pelo mais realista dos filmes, como mostra Sampaio ao comentar o fenômeno de A bruxa de Blair (The Blair Witch Project. EUA, 1999, Direção de Daniel Myrick e Eduardo Sanchez). Atores e espectadores experimentam o desconhecido e vivem um “pesadelo sinistro, alimentado pelo mais flagrante realismo”, expostos aos “sinais aterradores de uma presença do irrepresentável” (p. 59). Para a ensaísta, trata-se de uma “busca realista, que só encontra sua realização plena no domínio ficcional, talvez porque por nossa própria natureza, tendamos a só poder reconhecer neste domínio – o da ficção, o do imaginário – o sentido da realidade” (p. 60).

 

Em “Cinema e poéticas da subjetivação”, Francisco Elinaldo Teixeira faz uma complexa e rigorosa análise do que ele chama de indicadores do processo de mutação do cinema, desde a crise do cinema de autor, passando pelo reenquadramento da história do cinema pela filosofia de Deleuze (que discute o “cinema de poesia” de Pasolini), pela emergência das estéticas videográficas, até desembocar no horizonte aberto pela criação de “imagens de síntese” (povoamentos de imagens no espaço informático). Deparando-se com Deleuze, Foucault e Nietzsche, o leitor pode sentir um excesso de teorização, que demanda familiaridade com a área e um debruçar-se muito atento às articulações do autor.

 

Comento, ainda, mais um ensaio da “Parte Um”, “Falas tornadas imagens ou imagens faladas: psicanálise, Godard e Tarkovsky”, de Miriam Chnaiderman, parte de uma pergunta: “Pode um sonho ser lido como um texto? Se a psicanálise trabalha com o mundo dos afetos, como poderia a clínica ser pensada como fenômenos da linguagem? Que misteriosos processos de intersemiose levariam ao maravilhoso da psicanálise onde através da fala o corpo se transforma?” (p. 102). Intrumentalizada pela semiótica, a autora discute a polêmica da hegemonia do discursivo sobre a imagem. Mesmo assumindo, na esteira de Peirce e de Lacan, que “o que existe é um mundo de linguagem determinando o destino humano” (p. 104), Chnaiderman questiona o limite da palavra frente ao psíquico ao longo de todo texto: “O inebriamento com o verbal é narcísico, logocêntrico, parece dizer-nos Freud. O trabalho com a fala, com o verbo deve levar à abertura para o visível, para o imagético” (p. 107).

 

É por esse prisma – da autonomia da imagem frente à narrativa – que a autora aproxima os filmes Nouvelle Vague (Nouvelle Vague, Godard, Suíça/França, 1990) e O sacrifício (Offret/Sacrificatio, Tarkovsky, Suécia/Reino Unido/França, 1986): “A inutilidade das palavras, o questionamento da fala, a busca de pura-imagem na fusão com a natureza, é este o tema do filme [O sacrifício]. Tarkovsky e Godard buscam o puro cinema, vão ao encontro da pura imagem ótico-sonora fazendo surgir a coisa em si mesma…” (pp. 116-117).

 

Certamente, esse núcleo da “pura-coisa” remete ao inconsciente, à irrupção de afeto que rompe o recalque. Como se aproximar do que parece escapar ao simbólico, à metaforização, se só através desse processo é possível apreender o movimento pulsional? Enigmas da análise, que a ensaísta consegue trazer à luz pelas imagens do cinema.

 

Os ensaios mais específicos da “Parte Dois” tratam de filmes bastante interessantes. O livro de cabeceira (The Pillow Book, Peter Greenaway, Inglaterra, 1995) é analisado por Renata Cromberg no texto “Tornar-se autora (Corpo e Linguagem)”. Explorando o uso, pelo filme, do ideograma hieroglífico japonês – que funde texto e imagem –, a autora parece caminhar no mesmo campo de reflexões de Chnaiderman: “Assim, Greenaway propõe um mundo imagético que quer deixar a história das imagens dominar”, mostrando “o perigo do mundo ordenado pelas palavras” (p. 152). Cromberg afirma que o pensamento por imagens de Greenaway lida com os chamados “traços lektônicos”, conceito utilizado por Julia Kristeva para referir-se aos “processos pré-verbais, semióticos, no funcionamento simbólico completo de um sujeito que fala, feitos ao mesmo tempo de linguagem e de representação: deslocamentos, condensações, tons, ritmos, cores, figuras, sempre em excesso em relação ao representado, ao significado”¹.

 

Cromberg procura uma forma de contato com a obra que não aprisione o real-imagem no “império do entendimento” numa “busca inútil de significações já dadas” (p. 153). Aliás, esse parece ser o anseio de muitos dos ensaístas desse livro, temendo substituir a linguagem do cinema, feita de signos imagísticos (“im-signos”), pela linguagem literária, feita de signos linguísticos (“lin-signos”), nos termos de Cromberg (p. 154). No entanto, sua minuciosa análise, inspirada, entre outros, por Serge Leclaire, acaba recorrendo a uma certa “tradução” psicanalítica das imagens do filme: “Os amantes calígrafos constituem uma série substitutiva da figura do pai. Enquanto eles escrevem nela, permanecem intactos e ela também, na repetição diferencial de um gozo erógeno preso à marca erógena parcial paterna” (p. 163). Ao final, à revelia de Cromberg, as imagens se fazem texto para serem decodificadas.

 

Já em “Encontros entre imagens e conceitos: reflexões sobre a temporalidade em psicanálise”, de Silvia Alonso, é no intervalo entre as palavras e as representações-coisa² que se faz a sua leitura do filme Antes da chuva (Pred dozhdot, de Milcho Manchevski, 1994, Reino Unido/França/República da Macedônia). Para Alonso, é no encontro com a figurabilidade que os conceitos adquirem força. Os três episódios do filme, “Palavras”, “Rostos”, “Fotos”, culminam ao seu ver, na noção de “temporalidade do a posteriori, temporalidade da errância da vivência até que um sentido se faça: as imagens ficam em suspenso, à espera, e adquirem sentido no próprio desenrolar da história. Tempo do a posteriori, no qual o sentido é criado permanentemente e re-criado na produção de novas articulações” (p. 192). Sensível e profunda, a leitura de Alonso descortina faces novas do filme.

 

É esse também o caso do penúltimo ensaio, “Desejo e liberdade: a estética do ressentimento”, de Maria Rita Kehl, que compara dois filmes: O piano (The Piano, Jane Campion, Austrália/França, 1992) e Dead Man (Dead Man, Jim Jarmush, EUA, 1995). Seu ponto de partida é entender o poder de empatia e identificação que as personagens ressentidas exercem no público espectador. A partir de Nietzsche e Paul Laurent-Assoun, Kehl define o afeto do ressentimento como “recusa do sujeito a implicar-se no próprio desejo” (p. 216); resultaria daí, no espectador, “o gozo vicário de poder, ao mesmo tempo, agir em nome próprio e alegar uma certa irresponsabilidade, uma (ilusória) inocência em relação ao desejo” (p. 217). A psicanalista retira dessa ideia uma apaixonante leitura contrastante dos dois filmes. De um lado, Ada, protagonista de O piano, “recusa-se a esquecer o que a vida lhe fez” (p. 221) e, oprimida como as histéricas do século passado – mulheres desprovidas de voz e recursos próprios –, cultiva a “vingança silenciosa, o desprezo, o ódio cozido no fogo lento do ressentimento” (p. 222).

 

De outro lado, o que se vê em Dead Man (e em toda filmografia de Jarmusch, como mostra Kehl) é o contrário da “estética do ressentimento”. O passado fica para trás e a personagem se entrega ao que a vida oferece. Aqui não se trata mais da “repetição freudiana do sintoma, produto do desejo recalcado, mas o imponderável da vida que escapa ao controle do eu (…)” (p. 226). Em Jarmusch, as referências ao que foi reprimido pela cultura americana (no caso, as raízes indígenas soterradas pelo capitalismo) “não aparecem nestes filmes, para lamentar seu esquecimento, e sim para rir dos vivos” (p. 224). A originalidade do tema e consistência da argumentação fazem desse ensaio um dos mais atraentes do livro.

 

Há, ainda, os últimos artigos de cada uma das partes: “Teoria do cinema e psicanálise: intersecções”, de Fernão Ramos, sobre a análise lacaniana da situação espectadorial dos homens e das mulheres frente à tela de cinema; e “Alteridade e cultura. A feiura, forma de horror no neonazismo”, de Joel Birman, sobre o filme Táxi (Táxi, Carlos Saura, Espanha, 1996). Fica aqui o convite para que o leitor confira a contundência das afirmações e a ótica inusitada com que ambos autores mostram seu forte repertório teórico.

 

É conhecida a recusa de Freud em transpor para o cinema seus casos clínicos. Segundo ele, dedicou-se a transformar imagens em palavras e não iria, por preço algum, fazer das palavras imagens. O presente livro enfrenta o desafio de não sufocar com o verbal o que só a potência da imagem pode revelar. Continuar a fala sobre ele é mediar demais o que deve ser experimentado.

 

Notas:

 

¹ Julia Kristeva et al. “Elipse sobre o pavor e a sedução especular”, in: Psicanálise e cinema. Lisboa, Relógio d’Água, 1984, p. 28. (Apud Renata Cromberg, no artigo acima comentado, p. 153).

² “… a representação-coisa (…) consiste no investimento, se não da imagem mnêmica direta da coisa, pelo menos das marcas mnêmicas dela derivadas” (S. Freud, “Lo inconsciente” (1915), in: Obras Completas. Buenos Aires, Amorrortu Editores, 1989, vol XIV, p. 194 (Apud Silvia Alonso no artigo acima comentado, p. 188).