A dupla face do código

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Sobre Ética e Psicanálise, de Maria Rita Kehl, investiga as relações entre alienação e responsabilidade

Publicado em caderno Mais! – Folha de S.Paulo – Pág. 18
28 de julho de 2002

Giovanna Bartucci

Recentemente lançado pela Companhia Das Letras, Sobre Ética e Psicanálise (2002, 208 págs.), de Maria Rita Kehl, é destinado a todos aqueles que se preocupam com a crise ética vivida pela sociedade ocidental. Dando seqüência à série inspirada em Sobre Ética e Economia, de Amartya Sen (144 págs.) – cujas Conferências Royer, de 1986, deram origem ao livro On ethics & economics –, e ao qual se seguiu Sobre Ética e Imprensa (246 págs.), de Eugênio Bucci, este terceiro volume também trata de questões importantes no que se refere à contemporaneidade. Assim é que a autora dedica-se, fundamentalmente, à explicitação do papel da psicanálise na desconstrução dos parâmetros que sustentavam uma ética implícita na tradição pré-moderna. Soma-se a isso, então, a sua reflexão acerca da contribuição da psicanálise para a criação de novos vetores que orientem uma ética para a modernidade – uma vez que, “na modernidade, o sentido da vida não é dado por nenhuma verdade transcendental que preceda a existência individual”.

Filosofia imanente

Seguindo-se a Elisabeth Roudinesco, historiadora e psicanalista francesa, Maria Rita Kehl considera que no contexto da contemporaneidade, em que as razões filosóficas, religiosas e/ou tradicionais já não respondem às possibilidades de construção de destino abertas no último século da modernidade, “a psicanálise ocupa, além de uma função terapêutica, o lugar de certa filosofia imanente da existência prenchendo os vazios de discurso, tão intoleráveis e angústiantes” – ainda que isso não signifique que a psicanálise seja uma Weltanschauung, uma visão de mundo, equivalente a outras que a modernidade produziu.

Maria Rita Kehl situa, então, a crise ética em curso em duas vertentes: uma que se refere ao “reconhecimento da lei”, e outra, à “desmoralização do código”. Entende que a crise que diz respeito à lei universal que funda nossa condição de seres da cultura, “a que impõe uma renuncia ao excesso de gozo, presente em todas as sociedades humanas na forma da interdição do incesto”, se deve à dificuldade do reconhecimento da dívida simbólica – dívida para com os antepassados e a coletividade a qual pertencemos, representada por uma classe social, cultura, país ou religião –, fundamentalmente, pela falta de “uma base discursiva que confira apoio e significado à impossibilidade de gozo”.

O código, no entanto, ao contrário da Lei, “tem certa autoria, ainda que difusa e depende de técnicas de divulgação e propaganda para se tornar consensual, dispensando razões e explicações. (…) Quando perguntamos ‘por quê?’, é porque a sustentação simbólica (inconsciente) do código se esfacelou, questionada por discursos que representam outros pactos, outras demandas sociais”. Assim é que a ética começa a importar na medida em que o lugar “de fora” que dava significado à interdição se inscreve agora no inconsciente.

Os desenvolvimentos da autora reafirmam, então, as relações intrínsecas entre psicanálise e ética. Ao tomar como fundamento a proposição lacaniana do “inconsciente como discurso do Outro”, estabelece-se “uma relação necessária entre psicanálise e ética pelo fato de a psicanálise entender o homem diante do drama da liberdade e da alienação ao inconsciente (…)”. De fato, diante da evidência de que esse “Outro” é um lugar vazio de significação e intenção, uma abstração, um fato de linguagem, institui-se uma incompatibilidade entre a culpa neurótica e a ética: “Quem mais, além de mim, pode se responsabilizar por algo que, embora eu não controle, não posso deixar de admitir como parte de mim mesmo?”

A responsabilidade, como solução de compromisso entre o sujeito e seu desejo, é o oposto da culpa neurótica. É possível compreender, então, porque a autora não despreza a demanda – ainda que atribua à mesma certo “mal-entendido” –, de fazer da teoria psicanalítica uma visão de mundo: “a contribuição mais importante que a psicanálise pode oferecer para constituir um novo saber erótico é a insistência na castração como condição do desejo e do prazer”, reafirmará a autora. Não é à toa que a questão que se coloca a um analisando em final de análise é “a de como articular alienação e responsabilidade”.

Mas vale dizer que, se a criação de sentido para a existência é uma tarefa simbólica que se dá por meio da produção de discursos e narrativas sobre “o que a vida é” ou “o que a vida deve ser”, uma tarefa coletiva “da qual cada sujeito participa com seu grão de invenção”, há que atentar para esta falta de “uma base discursiva que confira apoio e significado à impossibilidade de gozo”.

Assim é que, se a “pós-modernidade” é mesmo o lugar da ausência de garantias, se a globalização tem produzido o enfraquecimento de fronteiras, de distinções entre culturas, aliado a uma “mobilidade” econômica, geográfica e cultural, tem também produzido um contingente de excluídos cuja demanda por reconhecimento, talvez mais do que por inclusão, tem se tornado cada vez mais violenta. Entretanto, se, como observa o historiador Aldo Agosti, a globalização é inevitável, o caminho de expansão dos direitos constitui-se como o projeto que tem como função governá-la, regulamentá-la, “mitigando” seus piores aspectos. As organizações não-governamentais nacionais e internacionais tornam-se, por exemplo, o lócus no qual os direitos humanos encontram possibilidade de articulação.

A voz do outro

No entanto, no que se refere aos psicanalistas, entendo que é no momento mesmo em que seu saber é interrogado por uma experiência-outra – e não ao contrário – que a psicanálise se constitui como “lugar” no qual a alteridade poderá inscrever-se como tal. Não, não é à toa que já em 1895, por exemplo, Freud pôs em evidência o papel desempenhado pelos seus pacientes na constituição da teoria e prática psicanalíticas – à insistência do fundador da psicanálise na busca da origem de um sintoma, Emmy von N. teria alertado Freud para que, afinal, a deixasse “contar o que tem a contar”.

De fato, compartilho da idéia de Kehl de que “uma leitura canalha da descoberta psicanalítica diria que, se o inconsciente existe, tudo é permito”. Gosto de pensar, no entanto, que uma leitura ética da descoberta psicanalítica institui-se no momento mesmo em que a própria psicanálise não se permite tudo, toma a si como objeto de reflexão e, do bojo de sua insuficiência e incompletude, torna-se, então, apta a produzir “uma base discursiva que confira apoio e significado à impossibilidade do gozo”.