Produzido em 2009 – inédito
Giovanna Bartucci
O que faz com que um homem experiente, tendo vivido no exterior durante anos, retorne ao seu país de origem, o Brasil, e, com o objetivo de contar sua história para uma única mulher que um dia viu sentada sozinha à mesa de um restaurante, saboreando um vinho em silêncio, a sequestre?
E se esse homem, agora maduro e sofisticado, tiver sido um dia um rapaz magro, mal alimentado, de olhos fundos, um ladrão de livros que não deseja trabalhar e que rouba não importa quais livros para sobreviver? E se fosse comum esse jovem passar fome? E se as suas condições de moradia fossem precárias, um quarto com o teto cheio de infiltrações, um banheiro minúsculo, uma pia com torneira pingando, em uma pensão barata, em um prédio velho no centro da cidade do Rio de Janeiro?
Esse rapaz nutria também uma inveja insuportável de quem tinha aquilo que ele imaginava jamais conseguir. Possuia um hobby estranho que lhe dava enorme prazer: ler cardápios de restaurantes nos quais jamais entraria. O jogo, entretanto, só lhe apetecia a partir do momento em que ficava clara a impossibilidade de comer o que vinha oferecido nos cardápios. O fato é que, com o passar do tempo, o rapaz medroso e acuado, agora o homem experiente, se deu conta de que “podia adquirir de uma mulher suas lembranças, suas recordações, em suma: sua memória”. Havia descoberto o seu destino, “o de ser apenas memória, lembrança que de tempos em tempos buscaria do passado, às vezes com certa melancolia”.
O rapaz mantinha ainda uma fixação por nucas. Era por meio da observação das nucas das mulheres que conhecia que sabia detectar a sua idade. Mas, e se esse rapaz fosse um vampiro que se alimentava por meio das relações sexuais que mantinha com suas vítimas? Criaturas temidas, a lenda reza que os vampiros não possuem sombra, não se refletem em espelhos, e, quando matam suas vítimas, passam a se parecer com elas. Havia algo, no entanto, que não se adequava muito bem: o homem a que nos referimos possuía sombra. E, curiosamente, o relato de sua história se inicia no momento em que faz um único pedido à mulher, no dia em que a viu sentada sozinha à mesa do restaurante, e para quem cria uma biografia – a essa “mulher elegante, bem vestida, uns trinta anos, quem sabe casada com algum milionário, talvez ela mesma fosse de uma família rica, tradicional, e aproveitasse uma folga depois das compras para beber seu vinho em paz, longe do marido e das crianças, antes de voltar para casa”.
É nesse clima de suspense e mistério, então, que o escritor, crítico e professor de literatura Flávio Carneiro conduz A confissão (Rocco, 236 páginas), seu livro mais recente. Romance híbrido, que mescla elementos característicos da narrativa policial, psicológica e da crítica social, A confissão capta com delicadeza o desamparo e a angústia presentes na vida cotidiana contemporânea.
E, com efeito, não à toa, o personagem que conduz a narrativa busca saber “quem é”. Entretanto, se, para além do encontro com seu duplo, sua busca é realizada por meio das mulheres que conhece, o que torna o romance de Carneiro singular é a pergunta que o personagem-narrador faz à mulher que anos depois sequestra, pergunta esta que conduz toda a narrativa e que, claro, não explicitaremos, aqui. Contudo, vale salientar que ao lançar mão da nossa memória literária mundial compartilhada (leia-se o conto “O outro”, de Borges, e também os romances Caçando carneiros e Minha querida Sputnik, do escritor nipônico Haruki Murakami), o que Flávio Carneiro faz é possibilitar que o seu personagem-narrador adquira condições de afinal afirmar que “se um dia fosse escrever um livro seria (…) um livro que tentasse responder à pergunta: por que as pessoas sentem medo”.