Sagrado nas telas e no divã

Giovanna Bartucci

Giovanna Bartucci

Para a psicanalista Giovanna Bartucci, cinema é imagem e imagem é alma. Dessa forma, a sétima arte reflete o que nos toca e conduz a momentos de reveladora beleza, capazes de nos tornar um pouco melhores.

 

Publicado na Revista BONS FLUIDOS – editora Abril – nº 184 – Págs. 20-23 – Julho de 2014

Texto Rosane Queiroz  | Ilustração Zé Otávio

No consultório da psicanalista paulistana Giovanna Bartucci, sempre tem um filme em cartaz. “As pessoas trazem o cinema para o divã”, diz ela. Em algum momento do filme, o que acontece com o personagem também aconteceu na vida de alguém. O enredo ajuda a trazer à tona questões subjetivas, a reconhecer sentimentos e elaborar questões pessoais. Estudiosa das relações entre psicanálise e cultura, Giovanna, 51 anos – 15 deles dedicados a pesquisar e escrever sobre esse assunto –, lançou recentemente a antologia Onde tudo acontece – Cultura e psicanálise no século XXI (Civilização Brasileira), um apanhado de ensaios sobre fenômenos culturais e sociais – do cinema de David Lynch e Pedro Almodóvar passando por documentários nacionais e chegando aos reality showsEla comanda ainda o programa de web rádio Cultura no DivãAs sessões de cinema e de psicanálise se interligam, na percepção da psicanalista, que é capaz de captar a espiritualidade de um ponto de vista particular – não necessariamente ligado à religiosidade. “Freud é o ateu mais espiritualizado que o século 20 conheceu”, diz. A pedido de BONS FLUIDOS, ela conversou sobre espiritualidade – palavra que não existe no dicionário da psicanálise – com base em seu olhar apurado sobre alguns filmes que levantam o tema. “Uma pessoa espiritualizada é a que se tornou a melhor amiga do seu inconsciente”, define. Entre nessa cena.

O que é a espiritualidade na visão de uma psicanalista?

Para mim, é o oposto da religião. Ela é a possibilidade de o sujeito entrar em contato consigo mesmo, se apropriar do que é seu e transformar o inconsciente no seu melhor amigo. O que exige um trabalho analítico e cotidiano. A psicanálise pode tornar essa experiência possível.

Freud era espiritualizado?

Profundamente – e ateu. As pessoas o consideram um materialista sem alma, quando na verdade era um homem absolutamente conectado com seu tempo, com a cultura de sua época – ele nasceu na modernidade, em 1956, e viveu grande parte da vida no século 20 –, e que passou por duas guerras. Era curioso e interessado na alma humana. Foi um colecionador apaixonado de antiguidades. Que homem não espiritualizado colecionaria estatuetas gregas, egípcias e do Oriente Próximo? Ele dizia que as estátuas sobre sua mesa ajudavam a estabilizar as ideias que se dissipavam. Escrevia diante da deusa grega Atena. Freud observou o mundo e se deixou tocar por ele. Assim, transformou a si mesmo e o próprio mundo.

Na psicanálise, onde está a alma?

Em psicanálise, a ideia é que corpo e psique funcionem juntos. Em alemão, alma significa pisque. É a partir de onde o sujeito fala. Tornar o inconsciente seu melhor amigo é estar em permanente contato com a sua alma. Você para de ir atrás do que os outros querem e parte em busca da sua essência. É você com você.

Como a psicanálise e o cinema conversam?

As pessoas trazem o cinema para o divã. Os filmes se tornam material de reflexão e elaboração. Freud já dizia, na primeira metade do século 20, que “criar não é chorar o que se perdeu e que não se pode recuperar, mas substituí-lo por uma obra tal que, ao construí-la, se reconstrói a si próprio”. O cinema auxilia nesse processo de reconstrução.

Qual filme recente poderia comentar do ponto de vista da espiritualidade?

A grande beleza (Itália, 2014), que mostra a Igreja Católica de forma crítica. Quase como se dissesse onde não está a espiritualidade. A questão mais importante trata do caminho da vida para a morte e como percorrer esse caminho sem nos afastarmos de nós mesmos. Uma das indicações é olhar para as coisas. A câmera é o grande olhar, que sobrevoa os espaços, a praça, o homem sentado, as meninas caminhando. A espiritualidade é entendida como algo cotidiano: entre nascer e morrer, há a experiência de todo dia.  O personagem Jep (Toni Servillo) é um jornalista que publicou um único livro e convive a vida inteira com a pergunta: “Quando irei lançar o próximo?”. Ele leva 65 anos para responder. No final, passada a angústia da busca do sucesso, de ir a todas as festas, ele diz: “Já não quero estar em nenhum outro lugar. Me ocupo do tempo de agora”. Ou seja, ele só começa a escrever seu segundo romance quando deixa de se ocupar com o que os outros pensam e esperam e se apropria de si mesmo. A espiritualidade vem do caminho percorrido.

Qual a diferença entre a espiritualidade que vem para aplacar uma angústia e a que vem como experiência do próprio sujeito?

A espiritualidade que não está ligada a religião pode ser compreendida como o resultado de um caminho pessoal. A pessoa conversa consigo mesma, reconhece seus desejos, procura colocá-los em ação, tenta vencer os medos. Essa experiência vem de erros, acertos, reflexões. O filme sobre a vida de Chico Xavier  (Brasil, 2010) mostra isso.

Como analisa a espiritualidade de Chico Xavier?

Logo no início do filme, ele diz: “Busco uma vida de paz interior. E a doação faz parte dessa busca”. Isso não é religião. Tampouco espiritismo. É a forma como ele se sentia confortável consigo mesmo. A certa altura, diz: “Cada tiquinho de paz que levo a uma pessoa vale um tiquinho de paz que nunca foi minha”. Depois de anos de sofrimento, de uma infância difícil, de incompreensão sobre seu trabalho, Chico Xavier encontrou seu caminho como médium. Embora com finalizações diferentes, foi o mesmo que aconteceu com Jep, de A grande beleza. Cada um percorre o seu caminho no seu próprio tempo. O importante é estar conectado com o aqui e o agora.

O documentário A pessoa é para o que nasce (Brasil, 2004) fala com muita delicadeza sobre esse percurso…

O meu trabalho é relacionar a experiência artística e psicanalítica como lugar onde se constitui a subjetividade. Esse documentário é, ao mesmo tempo, observação e exposição da vida de três irmãs de Campina Grande (PB) que, tendo nascido cegas, cantam desde a infância em troca de esmolas. No filme, elas resgatam histórias, pessoas e pensamentos. Há um inesperado e surpreente vir a ser. Elas ressignificam suas vidas a partir da realização do filme. E o espectador pode se perguntar: “A pessoa é para o que nasce?”.

Qual a sua resposta para essa questão?

Eu penso que cada um traz características pessoais. Mas a família e o ambiente influenciam na maneira como esses talentos serão ou não desenvolvidos. Só que isso não tem nada a ver com espiritualidade. Sugiro substituir a palavra, aqui, por sensibilidade. Pode haver uma criança mais atenta porque foi estimulada para tal, por exemplo.

O que dizer sobre Gravidade (EUA, 2014)?

Penso que a médica (Dra. Ryan, Sandra Bullock), que fica à deriva no espaço, sobrevive e elabora suas questões emocionais (ela não consegue superar a perda de uma filha de 4 anos), não porque ficou à deriva, mas porque foi confrontada com a morte. E isso poderia acontecer na esquina. Muitas pessoas não olham para seu entorno, e não é preciso fazer uma viagem intergaláctica para se dar conta disso. Mas certamente uma experiência-limite faz com que resgatem o desejo de viver.

Como descreveria uma pessoa espiritualizada?

Primeiro, ela é capaz de olhar para o mundo e se deixar tocar pelo mundo. A partir daí, consegue transformar esse mundo, interno e externo. Ou seja, com ações e dispositivos éticos está apta a promover uma transformação significativa para ela mesma e para os outros. Ao ser tocada pelo mundo, ela devolve algo de bom a ele.

Um filme para…
… elaborar perdas:  As horas, de Stephen Daldry.
… entender sobre o amor: Amor à flor da pele, de Wong Kar-Wai.
… refletir sobre a morte: A grande beleza.