Jogo de espelho entre psicanálise e literatura

Literatura

Livro reúne artigos sobre a misteriosa travessia da linguagem, que pode ajudar autor e leitor a se decifrarem

Publicado no caderno PROSA & VERSO – Jornal O Globo – Pág. 3
22 de dezembro de 2001

Sergio Nazar David
Doutor em Teoria Literária

 

Freud, em seu ensaio “Uma dificuldade no caminho da psicanálise”, indica que a psicanálise se opõe aos estudos filosóficos e ao discurso da ciência. Lacan, em seu retorno a Freud, levou à frente este ato de escrever contra a tradição metafísica e totalizante ocidental. Em seus Escritos e em O seminário, propõe uma nova teoria do sujeito. O criador da psicanálise já percebia que por trás do rótulo que lhe impingem de “difícil de ser entendida” ou de saber “que ignora as forças sociais” estava não uma dificuldade meramente intelectual, mas sobretudo uma dificuldade afetiva. O arremate de Freud é inequívoco: “Onde falta simpatia, a compreensão não virá facilmente”.

 

Fidelidade ao legado mais radical de Freud 

Psicanálise, literatura e estética de subjetivação, organizado por Giovanna Bartucci (primeiro volume de um conjunto de três livros que abarcam literatura, cinema e artes), traz em seus melhores artigos uma marca de fidelidade ao que mais radical Freud nos legou.

 

Isto é: foi ouvindo seus analisandos que Freud pôde chegar à ideia do caráter não adaptativo da sexualidade humana. Portanto, seja como for, a civilização é sempre demais para o homem. Mas, se por um lado não há como se livrar totalmente do que Freud chama de mal-estar do homem na civilização, por outro a experiência de análise se propõe a, exatamente porque considera a singularidade da estrutura psíquica de cada falante, fazer com que cada um possa se posicionar diante da vida de modo único e criativo. No lugar da culpabilização do outro, pode advir um sujeito desejante, não mais refém de seus próprios pensamentos. No lugar da busca da Verdade, a psicanáIise põe o Verbo.

 

O trabalho de Giovanna Bartucci tem o mérito também de aquecer um viés da crítica literária que vem se fortalecendo, embora nunca tenha se tornado hegemônica: a crítica de embasamento psicanalítico. Neste aspecto, os trabalhos da própria Giovanna, de Ana Cecília Carvalho, de Noemi Moritz Kon, de Mário Eduardo Costa Pereira e de Ruth Silviano Brandão revelam uma coerência teórica que só favorece o diálogo entre literatura e psicanálise. O que buscam não é psicanalizar o autor, nem ler o texto literário como reflexo ou sintoma de impasses sociológicos. Como bem apresenta Ana Cecília Carvalho, “uma: abordagem psicanalítica do literário só se dará se levarmos em conta o núcleo de verdade (do desejo) escondido e revelado” na obra. O que está em foco é assim a constituição de um sujeito-escritor, que Ruth Silviano Brandão relaciona àquilo que Lacan chamou de “travessia do fantasma”. Morre o autor que se supõe capaz de fazer de sua obra um espelho de si mesmo ou do mundo, nasce o escritor atravessando e deixando-se atravessar pela linguagem. Morre o leitor em busca da Verdade do autor ou do texto, e nasce um leitor que deverá, no ato de interpretar, pôr algo de si também.

 

A leitura que Noemi M. Kon faz de “O gato preto”, de Edgar Allan Poe, não vai unicamente da teoria psicanalítica para a literatura. Noemi põe em curso algo que Freud muito praticou: “solicitar à criação artística as suas interpretações sobre a alma humana, que permitiriam ver, num jogo de espelhos, a própria face da construção psicanalítica”. Assim, o fantástico virá demarcar o fracasso da razão universalista e das leis supostamente naturais. O ensaio de Noemi mostra como passamos do homem fantástico de Poe para o homem psicanalítico de Freud: no lugar dos enigmas apontados por Poe no mundo exterior, Freud põe uma subjetividade que passa a indagar a realidade psíquica e leva em conta o que foge aos domínios da consciência.

 

A obra de Machado de Assis aparecerá, no ensaio de Ruth Silviano Brandão, discutida sob uma nova ótica. Tudo o que se fez até hoje de melhor e de pior no campo da crítica literária da obra de Machado de Assis foi, salvo uma ou outra exceção, com as armas da crítica sociológica. No entanto, uma leitura abrangente e meticulosa da obra de Machado levando em conta os temas caros à psicanálise ainda está por ser feita. Ruth já deu um passo importante, ao ler Machado de Assis fora do clichê costumeiro de “escritor pessimista”. A leitura comparada de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e de Dom Casmurro (1899) está entre as melhores páginas da crítica machadiana. Machado realizaria certo tipo de esvaziamento dos significantes, de superação do imaginário. Na segunda parte do ensaio, Ruth se detém na obra de Lúcio Cardoso, para então demarcar a impossibilidade de superação do imaginário. Diferentemente de Machado, em Lúcio sim haveria uma escrita labiríntica, anunciando o silêncio, a petrificação e a impossibilidade de qualquer saída.

 

Estudo sobre Aurélia delimita armadilhas 

O estudo que Mário Eduardo Costa Pereira faz de Aurélia, de Gerard Nerval, começa também por uma exposição de método, delimitando as armadilhas que a crítica psicanalítica deve evitar. O seu trabalho como texto literário liga-se a uma espécie de “como se”, através do qual a psicanálise lança alguma luz à literatura, e esta torna-se, em contrapartida, desde Freud, um dos principais aportes para a formulação teórica dos conceitos nucleares da psicanálise. Nunca é demais lembrar as leituras que Freud faz, por exemplo, de Édipo, de Hamlet, de Os irmãos Karamazov. Ou as que Lacan também fará de Édipo, de Antígona, do Rei Lear e de O banquete (de Platão). Mário Eduardo se aproxima do texto de Nerval compreendendo-o como obra de arte e como testemunho pessoal. O propósito do protagonista de Aurélia, segundo Mário Eduardo, se cumpre “através de um mergulho corajoso ao fundo da própria loucura”. A escrita, entretanto, não salva o próprio Nerval, que se suicida em 1855.

 

Será ainda em torno do tema do suicídio que Ana Cecília Carvalho comporá o ensaio “Pulsão e simbolização: limites da escrita”, indagando-se, a partir da poesia de Sylvia Plath, sobre a função que a escrita teria para os escritores que se matam.

 

Merece destaque, por fim, a leitura que a organizadora do volume faz da ficção de JorgeLuis Borges, levando à frente algumas formulações já feitas por Eneida Maria de Souza, em Traço crítico: ensaios (Ed. UFMG, 1993). Giovanna assinala, com Borges, que toda literatura é autobiográfica. A de Borges, entretanto, autobiografia o Borges sonhado. É de Fernando Pessoa: “viver não é necessário; o que é necessário é criar”. E de Borges: “eu vivo, deixo-me viver, para que Borges possa tramar sua literatura e essa literatura me justifica”. Recriar-se, fazendo-se outro no ato de escrever – eis como Borges formula ao seu modo o que está também em Pessoa. Giovanna fecha o volume aproximando a experiência psicanalítica do ato de escrever. Sim, uma psicanálise visa mesmo fazer de quem a experimenta um criador, um poeta de sua própria vida. O estudo da obra de Borges encetado por Giovanna nos faz lembrar uma cena de Tudo sobre minha mãe, de Pedro Almodóvar, quando Amparo, personagem do filme, diz que tanto mais autênticos somos quanto mais nos parecemos com o que sonhamos.