Em busca do desconhecido

Filhos abandonados ou gerados com sêmen anônimo procuram a metade obscura de sua identidade

Publicado na revista da Folha – Folha de S.Paulo – Ano 11 – nº 532 – Págs. 9-13
11 de agosto de 2002

Por Débora Yuri – Jornalista

 

O Dia dos Pais é uma data esquisita para a canadense Olivia Pratten, 20. Embora dê presentes e comemore como qualquer filha amorosa, a festa acirra sua sensação de ser parte de um quebra-cabeça desconjuntado.

 

Filha legítima de um casal em que a marido era estéril, Olivia foi gerada com sêmen de um doador anônimo. Do pai biológico, conhece apenas identificações superficiais, como “olhos azuis”, “cabelos loiros” e “tipo sanguíneo A positivo”.

 

“O pouco que sei sobre ele lembra a ficha policial de um criminoso”, descreve a estudante por telefone, de sua casa em Nanaimo, a 50 km de Vancouver.

 

A situação em si não é razão para traumas. Embora “diferente”, sua concepção foi planejada e resultou de um gesto positivo, uma boa ação feita por alguém que queria ajudar casais com problemas de infertilidade. Também não foi enganada, já que cresceu sabendo sua história. Mas a sensação de ter um “elo perdido” persiste.

 

“Meu pai já me perguntou uma vez: ‘Não está contente comigo? Por que ficar obcecada atrás de outro pai?’”, conta Olivia. “Mas não é isso que eu busco. Só quero juntar as peças do meu quebra-cabeças”, explica ela, admitindo que o pai “de direito”, Allan Pratten, sempre teve dificuldades para lidar com a questão.

 

“Eu sei que ele não gosta disso, não quer ser lembrado de que não é meu pai biológico. Mas, quando você faz amigos, você diz: ‘Minha família veio da Itália ou da Espanha’. O que eu posso dizer, se não sei metade do que sou?”, pergunta.

 

Olivia esta tentando descobrir mais pistas sobre o pai biológico. No último verão canadense, escreveu uma longa carta aos médicos que fizeram o tratamento de sua mãe, mas não recebeu resposta. Como última cartada, ela pretende procurar nos álbuns de fotos de antigos estudantes de medicina da Universidade de British Columbia, porque acredita que o doador tenha estudado lá.

 

“Em casos assim, os médicos costumam dizer que os genes não significam nada na vida da pessoa, mas não dá para aceitar isso”, observa o cinegrafista canadense Barry Stevens, 50, que, como o personagem de Vinícius de Oliveira em Central do Brasil ou o Léo (Murilo Benício), de O clone, percorreu uma odisseia atrás de seu pai biológico.

 

Até os 18 anos, Barry integrava uma família comum de Winnipeg (Canadá), com pai, mãe e uma irmã, Janice. Quando o marido morreu num acidente, a mãe decidiu contar o segredo, mantido até então: ele era estéril e os dois irmãos haviam sido gerados com sêmen de um doador desconhecido.

 

O canadense conta que os médicos achavam que seria melhor para as crianças ignorar as circunstâncias em que haviam sido geradas. O sigilo, porém, não ajudou muito. “Sempre me senti desconectado do meu pai, parecia que ele não estava à vontade naquele papel. Acho que o segredo acabou abalando a estrutura da nossa família.”

 

Há dois anos, lembra, decidiu ceder aos impulsos. Foi para Londres, onde a mãe havia sido inseminada, revirou arquivos e antigas relações dos médicos que o “criaram”, entrevistou centenas de pessoas. Nunca encontrou o doador, mas ele e Janice acabaram conhecendo um meio-irmão, um advogado londrino gerado com sêmen do mesmo homem.

 

No ano passado, a busca por sua herança genética virou um documentário, Offspring (Descendente), que foi ao ar nas TVs canadense e inglesa. David acha que, se tivesse descoberto a verdade com o pai vivo, poderia tê-lo entendido melhor.

 

“Todo mundo quer conhecer suas origens. Nós sempre buscamos saber de onde viemos e para onde vamos. No fundo, a pessoa quer descobrir se a raiz dela é boa ou não, qual é o seu pedigree”, explica o psicanalista José Otávio Fagundes, 60, da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

 

Deserdados genéticos – Embora atormente, a busca dos inseminados pela herança genética não é exatamente como procurar uma figura paterna. “Eu não conheço pessoas geradas dessa forma que encarem o doador como o seu ‘pai’. Para a maioria, ele é mais um amigo, alguém que ajudou e a quem eles gostariam de encontrar e agradecer”, explica David Towles, um dos diretores do banco de sêmen norte-americano Xytex.

 

Mais do que isso, o doador é também alguém que guarda parte da chave de sua identidade. “Eles procuram essa pessoa porque têm pouca ou nenhuma informação sobre metade de seus genes. E a maioria inicia a busca quando atinge a idade adulta”, afirma Towles.

 

A razão, dizem os especialistas, esta associada à maturidade. “A busca passa a ser fundamental assim que o indivíduo começa a procurar sua identidade adulta. A mãe representa o seu lado mais infantil, a dependência. Ele precisa do pai para fazer esse corte, para amadurecer”, explica José Otávio Fagundes.

 

Não à toa, quando ainda são muito novas, as crianças não ligam para essas questões. “Minha mãe me contou quando eu tinha cinco anos. Na época, não foi um choque, eu era muito pequena”, conta a canadense Olivia. “Quando você é criança, não está nem aí para nada”, confirma a paulistana Maria Candida de Souza, 76, que se insere no tipo mais tradicional de deserdados genéticos, o das crianças abandonadas ao nascer.

 

Maria Candida foi deixada na Roda dos Enjeitados da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo com dois dias de vida. No início do século 20, a lendária roda, desativada apenas em 1946, era o principal meio de adoção na cidade. As mães depositavam seu bebê no cilindro da rua Dona Viridiana e batiam com força na madeira; as freiras giravam o instrumento e pegavam o recém-nascido. Sigilosamente: ninguém via ninguém.

 

Maria nunca foi adotada. Até os sete anos, ficou na Santa Casa; depois foi estudar em um orfanato, onde ficou até os 18. Dali, saiu para trabalhar como empregada doméstica no Rio de Janeiro. Até se casar, aos 21, seu nome completo era “Maria Candida”, sem sobrenome algum.

 

Até hoje – seis filhos, nove netos, dois bisnetos depois –, ela se incomoda com o branco da biografia. “É como ter em casa uma parede com um retrato sempre vazio, dá uma tristeza”, compara. Achar algum laço com o passado foi um pensamento constante.

 

“Pensei em procurar pelo rádio, mas não tinha nenhuma pista… Hoje é mais fácil encontrar, né? É chocante você não saber de onde veio. Eu superei isso porque tive sorte, formei uma família linda.”

 

Objetivo comum – Na busca pela identidade, adotados, abandonados e inseminados se igualam na mesma necessidade, a de reescrever a própria história. “Na verdade, a pessoa não vai atrás desse pai ausente, e sim de si própria. No caso de indivíduos com ‘dois pais’, a angústia se dá porque ele sabe que o biológico está lá, em algum lugar; ele precisa de suas respostas”, afirma a psicanalista Giovanna Bartucci, 40.

 

E, mesmo que vivam uma relação familiar boa, sempre sobra espaço para a curiosidade. “Eu amo meu pai; além de ser um de meus melhores amigos, ele é, sem dúvida, ‘o’ meu pai. Mas eu não posso negar meu desejo de saber quem é esse homem anônimo, por que ele foi bom e doou sêmen”, afirma a estudante australiana Geraldine Hewitt, 19, que faz via-sacra por hospitais e clínicas de Sydney tentando descobrir sua paternidade biológica.

 

A procura, até agora infrutífera, não incomoda o pai, que tem mais dois filhos, cada um gerado por um doador diferente. “A gente faz até piadas em família. Eu sempre digo a ele: ‘Ainda bem que não herdei seu narigão’, e ele ri”, conta Geraldine.

 

É a mesma curiosidade “desencanada” que move a professora Camila Rocena Quevedo, 25, adotada, cuja mãe natural morreu no parto, sem deixar nenhum referencial de identidade.

 

Entregue a um casal sem filhos, Camila virou o xodó do pai, mesmo depois da chegada de duas filhas biológicas. “Não consigo me ver em outra família, mas queria conhecê-los só para saber como eram”, diz ela. Depois, resume: “Acho que eu me contentaria vendo uma foto”.

 

Ela conta que costumava pensar muito sobre de quem teria herdado os olhos ou os cabelos, mas que essa fase passou. “Antes, eu ficava sem graça quando as pessoas diziam que eu e meu pai somos parecidos ou que eu puxei várias coisas dele. Hoje, acho até que isso é verdade.”

 

Precavida, a aeronauta carioca Bárbara,¹ 36, garantiu pelo menos a foto de que Camila sente falta. Homossexual, ela diz que sempre quis ter um filho e achou que a opção do doador desconhecido seria melhor que recorrer a um amigo. “Mas eu queria ver as fotos dos doadores e no Brasil isso não é possível, o sigilo é absoluto. Por isso, resolvi recorrer a um banco dos EUA”, conta.

 

Gerado com o sêmen de um fotógrafo americano, Breno, de dez meses, tem à sua espera uma pasta com informações sobre os hábitos, preferências e até uma foto do seu pai biológico quando criança. “Ele vai saber de tudo e, se quiser procurá-Io, não vou me opor”, diz a mãe.

 

Mesmo porque isso seria inútil, como se vê pelos outros entrevistados nesta reportagem. Fantasias e dúvidas, que já são usuais em qualquer ser humano, ganham um estímulo extra sempre que algo parece inacessível, segundo Luiz Cuschnir, psiquiatra do HC. “Pensar no pai biológico desconhecido amplia uma indagação possível para qualquer ser humano: ‘O que seria de mim se eu tivesse nascido de um outro pai?’”

 

Quem nunca se perguntou isso que atire a primeira pedra.

 

¹ Nomes trocados a pedido.