TV para a família não ver

Último capítulo da novela das oito leva às telas exemplos considerados antieducativos

Publicado na Revista da Folha – Folha de S.Paulo – Ano 12 – nº 592 – Págs. 22-24
19 de outubro de 2003

Por Débora Yuri – Jornalista

Tão aguardado quanto uma partida decisiva de Copa do Mundo, o capítulo final de Mulheres apaixonadas levou às telas duas sequências polêmicas. Na primeira, Carlão (Marcos Caruso) dava uma surra na filha, a vilãzinha Dóris (Regiane Alves), e humilhava a garota em público no lobby de um hotel. Depois, a professora Raquel (Helena Ranaldi) anunciava, em plena festa de formatura do colégio, que estava grávida de seu aluno Fred (Pedro Furtado).

 

Com esses desfechos, a novela de Manoel Carlos, autor conhecido por discutir temas do cotidiano e defender posturas politicamente corretas, teve seu fim marcado por dois exemplos de “antieducação”, segundo psicólogos e educadores.

 

“Fiquei surpreso porque, em nome do ‘final feliz’, o autor ‘cometeu’ essas cenas. As situações foram absurdas”, diz Miguel Perosa, 52, professor de psicologia da adolescência da Faculdade de Psicologia da PUC-SP. Para ele, o público que acompanhou fielmente a novela sentiu-se incomodado com o desenlace de algumas tramas.

 

“Não acredito que o telespectador tenha aprovado a gravidez da professora nem os aplausos que ela recebeu na festa, muito menos a escola que a apoiou. E não se trata da escola ser liberal ou não”, afirma.

 

Uma das personagens mais destacadas da trama, Raquel era a professora de educação física submissa a Marcos (Dan Stulbach), o ex-marido violento, que por anos a espancou com uma raquete de tênis. E mais do que transar com seu aluno adolescente, ela o envolveu numa disputa com um homem violento e descontrolado. Fred acabou morrendo por causa do ciúme do agressivo “homem da raquete”, num acidente de carro. Grávida, Raquel mostrou ainda que não deu muita bola para uma das maiores bandeiras educativas da juventude de hoje – o uso da camisinha.

 

“Essa história inteira estava errada, foi completamente deseducativa. E pior é que quase todo brasileiro viu o final dessa novela”, diz José Augusto de Mattos Lourenço, 56, presidente do Sieeesp (Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino no Estado de São Paulo) e diretor do colégio São João Gualberto. Ele condena a conivência da escola, personificada nas atitudes compreensivas de Helena (Christiane Torloni), a diretora. “A direção não deve aceitar envolvimento entre professor e aluno, principalmente quando este é menor. Quando começaram o caso, Fred tinha 17 anos. Além disso, a diretora tinha conhecimento do risco de vida que um jovem sob sua responsabilidade corria, porque sabia das ameaças do ex-marido da professora.”

 

Mas as piores críticas vão para Raquel. “Ela tinha certeza do mal que poderia acontecer ao garoto, mas mesmo assim não se conteve, coisa que uma adulta responsável, ainda mais professora, teria feito. Se eles não tivessem se envolvido, o rapaz não teria morrido”, observa Lourenço.

 

O educador mostra que era mesmo “noveleiro” de carteirinha. “Ficou claro que a Raquel já tinha tido uma relação dessas com aluno em outra cidade, e que o Marcos também causara danos a este outro rapaz. A repercussão mostrada na formatura também foi irreal, porque uma professora de ensino médio que, indiretamente, causa a morte e depois engravida de um aluno seria um escândalo, prejudicaria a imagem de qualquer escola. Na ‘vida real’, ela seria demitida por justa causa na hora.”

 

Pai pode bater? A cena em que Dóris apanha do pai na cara e de cinto, depois que ele a pega no quarto do hotel com um homem, chocou até alguns que torciam por um castigo severo para a megera.

 

“A limitação através da violência não é educativa. Não se bate em filhos nem se deve humilhá-los nunca. Assim, a jovem pode aprender a colocar limites através da violência e da humilhação, ficar com ódio mortal de qualquer autoridade e desafiar a todas ou ainda iniciar um processo severo de inibição de desejo que vai anulá-la para o resto da vida”, diz o psicólogo Miguel Perosa, da PUC-SP.

 

Na visão de Giovanna Bartucci, 41, membro do departamento Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, a surra deseduca. “Carlão conduziu mal a educação da filha por anos, omitiu-se e submeteu-se a ela. Quando finalmente resolveu assumir seu papel de pai e botar limites na menina, foi porque ficou com vergonha de ela estar virando uma garota de programa?”

 

A mãe de Dóris também é atacada pela psicanalista. “Ela sempre foi conivente com as atitudes erradas da filha e não se transformou, não aprendeu nada. Quase nenhum personagem se repensou e mudou, porque o objetivo da novela não era educar, instaurar uma reflexão. As coisas aconteciam, mas parecia que ninguém tinha responsabilidade sobre si mesmo.”

 

Giovanna cita como exemplo de “novela reflexiva” O clone (2002), de Glória Perez. “A menina Mel (Débora Falabella) foi muito bem trabalhada e trouxe junto uma excelente campanha antidrogas. O público pôde ver como ela entrou no vício, quais os motivos, acompanhou seu longo caminho de recuperação, aprendeu que ela não saiu do fundo do poço de graça”, observa.

 

Para a psicanalista, as únicas personagens bem construídas de Mulheres apaixonadas eram Santana (Vera Holtz), a alcoólatra que conseguiu largar o vício depois de quase morrer, e as jovens lésbicas Clara (Alinne Morais) e Rafaela (Paula Picarelli). “Mas acho que isso se deve mais a atuação delas do que ao texto do autor.”

 

De qualquer forma, o tão badalado capítulo final não frustrou suas expectativas. “Não dá para esperar mensagens educativas no último capítulo de uma novela que não foi educativa desde o início”, avalia Giovanna. A Revista procurou o autor Manoel Carlos, mas sua assessoria informou que ele está em férias.