Morte e celebração na África

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Publicado no caderno Mais! – Folha de S.Paulo – Págs. 22-23
5 de novembro de 2000

Giovanna Bartucci

Mostra Africana de Arte Contemporânea, mostra de curtas-metragens da cinematografia africana, longas-metragens premiados, romances indicados ao Prêmio Pulitzer, a África é, sempre foi e sempre será tema de destaque e curiosidade, seja em primeiro plano, ou como pano de fundo. Como concebem alguns, a África é um continente ao mesmo tempo persistente nas tradições e em busca da modernidade.

Talvez seja por isso mesmo que A Bíblia envenenada (Editora Revan, 2000, 448 págs.), romance de Barbara Kingsolver indicado ao Prêmio Pulitzer de Ficção de 1998 e seu primeiro romance traduzido no Brasil, tenha como pano de fundo a luta do povo africano pela independência, culminando com o assassinato do governante eleito do país, Patrice Lumumba, calculadamente ordenado pelo governo do então presidente Eisenhower e executado pela CIA (Agência de Inteligência norte-americana).

História e Ficção

Como registra a autora, em “Nota” que é porta de entrada de A Bíblia, “este é um trabalho de ficção. (…) Mas o Congo (…) é legítimo. As figuras e acontecimentos históricos aqui relatados são tão reais quanto me foi possível apresentá-los com a ajuda de registros históricos, em toda a sua fascinante variação”.

Assim, A Bíblia envenenada é um romance composto por narrativas alternadas da mulher e das quatro filhas de Nathan Price, pastor norte-americano que “transporta” sua família e missão para o então Congo Belga de 1959. Embora Orleanna Price e suas filhas Ruth May, as gêmeas Leah e Adah, e a primogênita Raquel esforcem-se por prever e, mais que isso, carregar consigo tudo que, imaginam, irão precisar, logo percebem que tudo – de sementes até as Escrituras – é calamitosamente transformado em solo africano.

O que se segue, então, é um épico surpreendente sobre a ruína de uma família e sua reconstrução durante três décadas na África pós-colonial. No entanto, se neste romance o continente africano parece exercer, ao mesmo tempo, a função traumática de desagregação e a função propiciadora de transformação, tanto familiar quanto singular (individual), este será apenas o primeiro plano.

Não é à toa que lemos, na já referida “Nota” de Kingsolver: “Fui a filha feliz de dois trabalhadores em saúde mental cuja caridade e curiosidade os levou ao Congo (…) Esperei durante quase 30 anos para atingir a maturidade e o saber necessários para escrever este livro. O fato de tê-lo escrito não é prova de qualquer das duas coisas (…) É inútil esperar pelas coisas que só se veem à distância”. É curioso, porque ao escrever sobre uma experiência por meio de um instrumento de ficção – e não há dúvida de que Kingsolver o tenha feito –, as perguntas que percorrem seu romance como um todo parecem ser: “Os sujeitos se transformam, efetivamente?”. E nos casos em que a resposta é afirmativa: “qual será o instrumento de transformação, de mudança?”.

Por certo, se é inútil esperar pelas coisas que só se veem à distância, em outras palavras, pela diferença, não será difícil identificar, aqui, o “horror” como um dos instrumentos propulsores de diferença, de subjetivação. Assim, foi no momento mesmo da perda de uma de suas filhas – ápice do romance, poderíamos dizer assim – que Orleanna Price se colocou em movimento. “Casei-me com um homem que provavelmente nunca iria me amar. Seria um pecado contra a sua devoção à humanidade. Continuei mulher dele porque era algo que conseguia ser, todo dia.” Mas, “o primeiro filho é seu próprio pé que avança (…). Posto de forma clara e simples, aquilo foi a origem do nosso êxodo: eu tinha que continuar em movimento”.

Assim é que, na experiência do horror, na perda do “próprio pé que avança”, não há, para o psiquismo, diferença entre os polos do sujeito e do objeto, reguladores de outros cenários mentais. Também não há diferença entre a experiência do “dentro” e o reconhecimento do “fora”, assim como também não há a regulação da subjetividade pela oposição entre interioridade e exterioridade. É este momento mesmo em que a África é angústia, é a morte como presença, é a inexistência de qualquer referente, o que faz com que a subjetividade deixe de existir momentaneamente.

No entanto, se por um lado a África parece exercer a função traumática de desagregação, tanto quanto de propiciadora de transformação, será também quando a África é “horror” que processos de subjetivação são postos em marcha. Se, como Freud nos indica, é a angústia evocada pela morte aquela a materializar a finitude do sujeito, será esta mesma angústia aquela a constituir “condição de possibilidade de movimento”, porque finito.

É mesmo curioso, e até paradoxal, mas os personagens de A Bíblia envenenada, parecem realmente ter encontrado a salvação: segundo Orleanna Price, “viver é ser marcado. Viver é mudar, adquirir as palavras de uma história, e essa é a única celebração que nós mortais realmente conhecemos”.