Radiografia de um tabu

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Obra pioneira, O sexo da mulher descreve com naturalidade e descontração a anatomia e a fisiologia do órgão sexual feminino

Publicado no caderno Mais! – Folha de S.Paulo – Pág. 22
23 de julho de 2000

Giovanna Bartucci

O timing não poderia ser melhor. Lançado no Brasil há pouco, O sexo da mulher, de Gérard Zwang, é a reedição de uma obra que absolutamente não passou despercebida na França, em 1967. Tendo provocado em homens e mulheres as mais diversas reações, O sexo da mulher chega ao Brasil no momento mesmo em que a mídia alardeia o incremento da vida sexual após os 40; em que o Brasil, mais precisamente a cidade do Rio de Janeiro, é a sede do primeiro curso de pós-graduação em sexologia na América Latina. No cinema, sexo, prazer e maturidade têm caminhado de mãos dadas, veiculando uma determinada representação do mundo, das relações entre as pessoas, produtora de uma certa realidade que é, eventualmente, concebida como modos de conduta, caso já não o tenha sido, anteriormente.

Assim é que essa obra foi a primeira a falar sobre o sexo da mulher e suas funções com certa naturalidade e descontração. E a primeira a ter feito sua descrição anatômica exata. Será por meio da descrição “da coisa em si” que Gérard Zwang parece “fazer ver” aos leitores o sexo da mulher. Seu interesse pelo tema já o levou a publicar o Atlas du Sexe de la Femme (Atlas do sexo da mulher), pela Le Magasin Universel, em 1996, após 30 anos de preparação, reiterando mais uma vez a ideia de que o autor quer fazer ver “o órgão-chave da posse do corpo feminino”, (o qual) “é muito menos conhecido que a face oculta da Lua, (tendo) sua visão (sido) um dos tabus mais arraigados de nossos costumes”. Para combater tal tabu, o autor descreverá o sexo da mulher de diferentes heranças genéticas de forma minuciosa, discutindo detidamente as funções de micção, de parturição e erógena. Com base em suas descrições morfológicas e fisiológicas, Zwang finalmente conceberá a zona erógena principal da mulher como correspondente a “uma faixa cutâneo-mucosa contínua, que se desdobra como um leque desde o nascimento da fenda até o fundo da vagina, ocupando o clitóris, a região perimeática, a parede vaginal anterior e o fundo de saco posterior”. Sendo o clitóris “o inseparável educador da vagina, seu incitador ao prazer, seu vizinho de porta e seu melhor amigo”.

Sejamos claros: Gérard Zwang é um apaixonado, um aficionado por seu “objeto de estudo”. E será a paixão desse cirurgião e ginecologista pelo sexo da mulher que fará com que o autor lute, bravamente, contra inimigos imaginários, dentre eles 5.000 anos de cultura judaica, 2.000 anos de cultura cristã, tantos outros mil anos de cultura oriental e até mesmo contra o velho Sigmund Freud, pai da psicanálise, em defesa do sexo da mulher. Pois sim, é aí que “a porca torce o rabo”, como diria Zwang. Atirando para todos os lados, no que concerne à psicanálise o autor parece pretender enterrar uma disciplina. “Freud enganou-se em sexologia, em psiquiatria, em hipnologia, em paleoantropologia, em sociologia, em crítica de arte etc. E nos enganou”, afirma. Ao sobrepor certa terminologia de senso comum a conceitos caros à psicanálise, tais como “falo” e “sexualidade”, fundamentalmente porque relativos à prática clínica do psicanalista, na medida em que o uso do termo “falo”, por exemplo, sublinha a “função simbólica” desempenhada pelo pênis na dialética intra e intersubjetiva, Zwang explicita seu desconhecimento da matéria freudiana. O que, no entanto, é compreensível: para o autor, “a função erótica está inscrita em nossos genes; ela faz da ligação sexual humana bem-sucedida uma ligação erótica entre um homem e uma mulher que se outorgam mutuamente o presente do orgasmo”.

Para a psicanálise, no entanto, o campo do psicossexual é irredutível a dados biológicos, não sendo o corpo nem o somático nem tampouco o organismo, ultrapassando, assim, em muito o registro biológico da vida, marcado que está esse corpo pelas pulsões. Assim, torna-se possível reconstruir as etapas da evolução psíquica que conduz a criança do sexo anatômico feminino, por exemplo, à posição subjetiva que a torna apta a satisfazer suas funções biológicas. Evolução que, contrariando as expectativas de Zwang, nada tem de natural e precisa seguir desvios paradoxais. De fato, não se nasce mulher, torna-se mulher, mesmo que isso signifique enfurecer Zwang ainda mais.