A psicanálise em positivo

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Romance de Leslie Kaplan confronta visão depreciativa da área recorrente nos últimos anos

Publicado no caderno Mais! – Folha de S.Paulo – Pág. 22
15 de julho de 2001

Giovanna Bartucci

É surpreendente, mas notícias relativas à “morte da psicanálise” continuam a chegar, seja por meio de programas televisivos, dedicados às diversas terapias alternativas, e que têm sua audiência garantida, seja por meio de questões relativas à própria sobrevivência da psicanálise. Tendo sua competência clínica colocada em questão, a reclamação de base parece ser: a psicanálise teria se tornado inoperante no contexto histórico da atualidade. É nessa medida que se torna ainda mais surpreendente constatarmos a presença de representações positivas da psicanálise na cultura: o romance O Psicanalista (Companhia Das Letras, 2001, Págs. 502), de Leslie Kaplan, é mais um testemunho disso.

O Psicanalista inicia com a interrupção de uma palestra sobre Kafka, proferida pelo psicanalista Simon Scop, por Eva, no momento mesmo em que ele defende ser a maldição (“malédiction”) paterna aquela que obrigaria o homem a cumprir um destino contra o qual se luta em vão. “Você não sabe o que é maldição”, dirá Eva a Simon, com certeza na tentativa de demonstrar que o acaso é mais forte que o destino. “Eu li A Metamorfose e minha vida mudou”, reafirmará Eva, antes de se retirar abruptamente da palestra. É a partir desse momento inaugural que somos convidados a acompanhar Simon em suas paixões: a linguagem e a psicanálise. “A linguagem”, diz também Simon, “abre em nós uma distância paradoxal, uma distância que nos divide e nos separa de nós mesmos: pois o homem, por sua vez, antes de poder utilizá-las, é literalmente feito, fabricado pelas palavras e as palavras são a pele dos sonhos”.

Também este romance, parece ter sido “escrito como um sonho”, um sonho de sua narradora, que nos convida a acompanhá-la em sua (nova) paixão: “Enquanto isso, me apaixonei. Bem, digamos que esse Simon Scop me agradava, mas muito mesmo”. O convite seguinte será, então, o de observar as sessões de psicanálise dos analisandos de Simon: os vemos, então, tomando forma, corpo, nos contando sobre suas paixões, sobre seus desejos, “contemplando seus sintomas”, “trabalhando em sessão”. E, se por momentos são Louise, Marc, Josée, Marie, Eva, analisandos ou não, aqueles a ocuparem o primeiro plano nesse jogo de figura e fundo, Simon será fundamentalmente fundo.

Mas não sua paixão pela psicanálise: “Simon gostava de Freud, é óbvio, de lê-lo e relê-lo. Toda vez se surpreendia, se apaixonava por essa descoberta, o Inconsciente, e sempre queria avançar, indo mais longe na exploração ‘dessa coisa espantosa que o homem é’, como está dito na tragédia de Édipo”, afirmará a narradora. Assim, se por um lado somos convidados a assistir ao transcurso dessas vidas projetadas no papel e, nessa medida, a acompanharmos – Leslie, Marc, Eva e tantos outros –, “indo cada vez mais longe na exploração dessa coisa espantosa que o homem é”, por outro, se torna impossível não ler que será a psicanálise aquela a ocupar o primeiro plano.

Tem-se aqui uma representação positiva da psicanálise na cultura: a tentativa de reproduzir, de preferência para aqueles que desconhecem a experiência de uma psicanálise, algo impossível de ser reproduzido – sessões de análise, analisando e analista “at work”, o mundo (psíquico) a partir de um dentro e a importante diferença que essa experiência possa vir a fazer na vida de nossos analisandos. “Eu já tinha me envolvido com a psicanálise, ela me tirara de uma situação difícil. Foi com um velho, de outra geração. Mas não garanto que isso não tenha contribuído para minha paixão por Simon”, pesquisa a narradora. É verdade, impossível negar, a paixão realmente move moinhos.

No entanto, há momentos em que paixão também é prisão – e parece ser aí que mora o perigo. Se por um lado Kaplan tenta de forma cuidadosa reproduziro irreproduzível – experiências que possibilitem aos sujeitos “pularem para fora de seus assassinos internos, de suas ruminações”, por meio da “linguagem que cria uma distância, um espaço” –, aquilo que deveria permanecer nos institutos de formação de analistas é moeda de troca de sua personagem-narradora. Assim, longas citações de textos freudianos, “debates” (teóricos) acerca da especificidade da psicanálise, da interpretação, dos destinos biológico e psíquico, da psicose e da neurose, da “realidade das pulsões”, da diferenciação entre intervenções medicamentosa e analítica se intrometem na fala de Simon, engravidam o pensamento da narradora de “O Psicanalista”.

Por certo, parece ser aqui que mora o perigo: se o texto de Franz Kafka pôde ter para Eva “função analítica”, possibilitando que ela fosse “mais longe na exploração dessa coisa espantosa que o homem é”, o testemunho do desejo em obra se dá, fundamentalmente, a partir da fala engendrada no cerne da experiência psicanalítica, junto a um outro que escute, que se cale, que pontue, que interprete. Pois, sim, psicanálise não é pedagogia; no entanto, a literatura quando pedagógica perde a condição mesma de liberdade presente na literatura que se fez livre do ônus da paixão.