Mesmo em desordem, família é último refúgio

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Reflexões de Elizabeth Roudinesco procuram esclarecer a função atual do núcleo familiar

Publicado no caderno Cultura – O Estado de São Paulo – Pág D7
31 de agosto de 2003

Giovanna Bartucci

Historiadora, psicanalista, professora na Ecole Pratique des Hautes Etudes, em Paris, orientadora de teses na Universidade de Paris VII, e membro da Ecole Freudienne de Paris, de 1969 à 1980, Elisabeth Roudinesco tem numerosos livros dedicados à historia da psicanálise. Depois da publicação, em 1993, da biografia do psicanalista francês Jacques Lacan: Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento (Companhia das Letras), da reedição dos dois volumes da História da psicanálise na França (Jorge Zahar), em 1994, e do Dicionário de Psicanálise (Jorge Zahar), em co-autoria com Michel Plon, em 1997, Roudinesco tem, nos últimos anos, se dedicado a refletir acerca da psicanálise e suas relações com a contemporaneidade. Foi assim em Por que a Psicanálise? (Jorge Zahar), e assim o é com A Família em Desordem (200 págs.), lançado no Brasil tabém pela Jorge Zahar.

Com efeito, Roudinesco entende que, na sociedade ocidental, a contemporaneidade – época na qual constatamos o desaparecimento do ideal revolucionário com a derrota do comunismo, este um grande ideal – é marcada por um profundo desejo de normalização. Assim, se anteriormente a autora se ocupou das razões pelas quais, após cem anos de existência e resultados clínicos incontestes, a psicanálise é frequentemente atacada por aqueles que pretendem substituí-la por tratamentos químicos considerados mais eficazes, atualmente Roudinesco tem se dedicado a refletir acerca do futuro da família, a partir da concepção que a própria psicanálise tem da mesma.

De fato, se na época moderna a família ocidental deixou de ser conceitualizada como “paradigma de um vigor divino ou do Estado”, a autora considera que, ainda que cada vez mais dessacralizada, a famíla permanece a instituição humana mais sólida da sociedade.

Interessada em compreender porque a transmissão da autoridade vai se tornando mais e mais problemática, à medida que as recomposições conjugais aumentam por meio dos divórcios e separações, a autora quer saber que destino foi dado ao pai. E mais, por que os homossexuais, homens e mulheres, manisfestam o desejo de se normalizar, por que reinvindicam o direito ao casamento, à adoção e à procriação medicamente assistida? Por que este desejo de família, como assim o denomina Roudinesco, uma vez que a homossexualidade sempre foi repelida da instituição do casamento e da filiação, a ponto de se tornar, ao longo dos séculos, o “significante de um princípio de exclusão”?

E, se atualmente as mulheres “dominam” a procriação, se os homossexuais têm o poder de assumir um lugar no processo da filiação, e se a liberdade sexual é ao mesmo tempo ilimitada e codificada, transgressiva e normalizada, onde estará o pai? “Estará o pai condenado a não ser mais do que uma função simbólica?”: esta é, na verdade, a pergunta que fundamenta todo o ensaio da autora.

Não é à toa, então, que o mérito de A Famíla em Desordem é o de tentar responder à tais questões por meio de uma análise profunda a partir da história, da antropologia, da sociologia, da tragédia grega e da literatura, do percurso que desembocará na constituição do conceito de complexo de Édipo, formulado por Freud. Ainda que Roudinesco não responda à questão de porque este “desejo de família”, a partir de considerações relativas à metapsicologia psicanalítica – um dos méritos de Roudinesco é o fato de que escreve para o público em geral –, sua análise rigorosa nos permite compreender uma das temáticas mais caras à psicanálise: “a família edipiana” e sua pertinência à modernidade.

Uma vez constatada a pertinência da família edipiana no que se refere à modernidade, Roudinesno parte para a compreensão da contextualização da família no que chama de “pós-modernidade”: a família que une, ao longo de um período relativo de tempo, dois indivíduos em busca de relações íntimas ou realização sexual.

E, de fato, ainda que a análise da autora nos permita constatar que o princípio da autoridade sobre o qual a família sempre se baseou encontra-se em crise na sociedade ocidental, que o roteiro clássico do Édipo – a criança que deseja o pai do sexo oposto e se identifica com aquele de seu próprio sexo – também está em crise, o fato é que nunca se revelou tão verdadeira uma das descobertas mais fundamentais da psicanálise, o caráter não adaptativo da sexualidade humana. Assim é que, se a contemporaneidade gera, a propósito da família, um distúrbio profundo, do qual o desejo homossexual transformado em desejo de normatividade – no bojo de uma economia liberal que tende a reduzir o homem a uma mercadoria – seria um dos reveladores, para Roudinesco, a família é reivindicada atualmente como o único valor seguro ao qual ninguém quer renunciar, tornando-se, afinal, “um lugar de resistência à tribalização orgânica da sociedade globalizada”.

Se a loucura, a sexualidade, o suicídio ou a morte são constituivos da própria condição humana, o que se altera é, na verdade, a representação que fazemos dela. Como afirma Roudinesco, a humanidade não pode curar-se do que ela é.