Tarefa urgente – retratos do mal

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Publicado na revista D.O. Leitura – Ano 22 – nº 02 – Págs. 10-11
Março / Abril de 2004

Giovanna Bartucci

Professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, docteur d’état pela Universidade de Paris I, autor de diversos livros, Denis Rosenfield não se furta a sua condição de intelectual. Ainda que não se considere “um crítico particularmente contundente”, ao diagnosticar, avaliar e julgar uma determinada situação política, como explicitou em entrevista concedida recentemente, Rosenfield entende que “boa parte da intelectualidade brasileira, que aderiu quase religiosamente ao Pratido dos Trabalhadores (PT) – hoje Governo Federal –, deixou de exercer a sua função crítica”. De fato, é isso que interessa ao autor: refletir, permanentemente, sobre os tempos que correm.

Não é à toa, então, que partindo dos atentados ao World Trade Center em 2001, Rosenfield procure diagnosticar problemas e explicitar os conceitos de ação humana, mal e existência, por meio de uma abordagem que recusa acepções preexistentes, tanto morais quanto religiosas. “Dessa maneira, não se julga uma ação apenas pela sua exibição em discursos ou em documentos escritos, mas por aquilo que ela mesma diz no transcurso do que é feito, mesmo que o feito o seja em silêncio ou dele não tenhamos documentos escritos”, elabora o autor em Retratos do Mal (Jorge Zahar, 2003).

Rosenfield, no entanto, entende que dizer que o mal “é” ou “existe” já traz consigo concepções que situam o mal como algo subordinado ao bem ou ao ser. Assim é que sua investigação procura explorar as vicissitudes do conceito de existência “enquanto conceito que medeia a nossa relação teórica e prática com o mundo. Sob essa ótica, por intemédio dessas ‘proposições existenciais’, pode-se melhor vislumbrar o significado conferido à metafísica enquanto saber do modo mediante o qual as proposições de existência se constroem, recortando diferentes aspectos e níveis da realidade”. Nessa medida, oferecendo diferentes perspectivas a partir das quais ações e comportamentos podem ser ditos e vividos como maus, refletindo sobre o que causa o horror, o autor revela a filosofia em sua função de traduzir fatos em conceitos, em proposições que incorporam e dão forma a uma concepção de mundo. Pensar o mal torna-se, assim, uma das tarefas mais urgentes de nosso tempo.

Com efeito, “fiz algo ousado, porque resolvi pensar por mim mesmo. Não fiz estudo de nenhum autor da tradição filosófica, mas tentei pensar as diferentes significações do mal no mundo contemporâneo e na história da filosofia. É uma obra pessoal, por isso, prezo tanto”, afirma Rosenfield em entrevista concedida a Revista Leader Digital. Assim, ao indagar-se acerca de como pensar o impensável, de como pensar o injustificável, o filósofo decididamente se confrontou com um dos conceitos mais difíceis da filosofia, o conceito de mal. Como explicita em Retratos do Mal, seu maior desafio foi o de se debruçar sobre aquilo que considera que atenta contra a própria razão. Não é à toa, então, que, por meio dos fenômenos e atos totalitários do século XX, o maior desafio com o qual se defrontou o autor foi, na verdade, o de repensar a ética, a política e o significado da existência humana.