Um ensaio sobre a leitura

Júlio Pimentel Pinto

Júlio Pimentel Pinto

Júlio Pimentel Pinto defende a experiência de linguagem como registro de múltiplas escrituras

Publicado no caderno Cultura – O Estado de São Paulo – Pág. D7
03 de outubro de 2004

Giovanna Bartucci

Quatro capítulos – “Leituras e críticas”, “Leituras da História”, “Leituras de Borges” e “Três outras leituras: Proust, Bioy Casares e Camilleri” – compõem o livro A Leitura e seus Lugares (Estação Liberdade, 184 págs.), livro de artigos e ensaios em que Júlio Pimentel Pinto analisa a leitura e o papel que exerce sobre qualquer escritura.

Historiador e professor no Departamento de História da USP, Pimentel Pinto lembra o escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) para destacar o fato de que “não há autor que não seja previamente leitor e que a leitura, dentro dos limites e das possibilidades do tempo e do repertório de quem a faz, constitui as bases da criação literária, põe em operação a máquina literária”.

Ele observa ainda que “também na história e em sua forma textual-narrativa, a historiografia, não há texto que não seja o cruzamento de muitas leituras”, e que “a história, agora transmutada em historiografia, precisa também ser pensada como experiência de linguagem e, como tal, registro de múltiplas escrituras”. A inventividade de um autor, no entanto, é “antes e acima de qualquer coisa, manifesta nas relações que se criam entre textos, na maneira de se operar o repertório de que se dispõe”.

É verdade, também Borges – reconhecidamente, hoje, um dos mais importantes literatos do século 20 – já havia aludido ao fato de que tornou-se impossível ser um escritor original no século 20 – agora, século 21 – e de que, acima de tudo, o real é inalcançável mesmo que pela linguagem. Contudo, se a especificidade e a inventividade de cada leitor se explicitam na trama que compõe a sua própria escritura, a singularidade do texto de Pimentel Pinto reside no fio condutor com o qual guia a própria trama: a “história nas margens”. Assim, sugerir que “é de leituras que trata este livro”, como o próprio autor o faz, seria simplificar as coisas. Com efeito, colocada em segundo plano pelo autor ao discorrer sobre o seu próprio trabalho – ou talvez pensada por ele como o “lugar da história na arte” –, o fato é que a inventividade de Pimentel Pinto reside, especificamente, na perspectiva histórica por meio da qual aborda seus temas.

Assim, não é à toa que este professor e historiador no Departamento de História da USP já de saída explicita que considera “a atitude crítica” como a principal preocupação do historiador. Consequentemente, seja debruçando-se sobre os “nossos tempos e o lugar da crítica”, sobre os “lugares e memórias dos livros”, sobre “o lugar do leitor”, ou ainda sobre a construção das identidades na América Latina, a preocupação fundamental de Pimentel Pinto é a de que “a leitura instala o lugar da crítica e cria condição para a existência da história (…) com seus caprichos e oscilações de interpretação, com sua vocação crítica”. Também ao debruçar-se sobre Borges, Bioy Casares, Proust e Andrea Camilleri, autor italiano de romances históricos e histórias policiais de sucesso, por exemplo, Pimentel Pinto trata de evidenciar seja a marca da atual crítica borgiana empenhada na busca da historicidade de sua obra, seja a experiência do passado que ressurge, “guiada pela experiência atualizadora da leitura”, em Bioy Casares. A importância da condição de leitor voraz de Montalbano, personagem central da literatura de Camilleri, “de livros que considera bons”, na medida em que é das associações que a leitura permite que se produz a crítica, também é foco do autor.

Mas será a sua concepção de “história nas margens” que opera a diferença. De fato, Pimentel Pinto entende que uma vez que a história é “colocada aparentemente no centro de toda elaboração textual por sua possibilidade de oferecer referências que permitam localizar as temporalidades das situações, co-produtoras de enunciação e de leitura, a história tende a uma posição marginal. É à margem, pensada metaforicamente, que se exerce esse papel de articulação de dispersas demandas, de conhecimentos múltiplos”. Dessa forma, sustenta Pimentel Pinto, “ao resgatar o que é específico a um tempo, constitui-se um conhecimento histórico que se conecta à própria temporalidade humana: algo que, datado, tem trajetória e fim: como tudo que é próprio da experiência humana, nasce, vive e morre”. E, com efeito, quem sabe valha a pena dar a César o que é de César.