A herança dos anos 70. De que amanhã… Diálogo

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Publicado na revista D.O. Leitura – Ano 22 – nº 05 – Págs. 16-17
Novembro/ Dezembro 2004

Giovanna Bartucci

De que amanhã se trata?, De que natureza é esse crepúsculo, o que virá depois?, indaga Victor Hugo em um de seus poemas de Cantos do crepúsculo, de 1835. Vale observar, contudo, que se, à época, “tudo (se encontrava) em estado de crepúsculo”, “nas idéias como nas coisas, na sociedade como no indivíduo”, o caso já não é mais este. E, de fato, este será o grande trunfo de De que amanhã… Diálogo (Jorge Zahar, 2004), livro de autoria conjunta de Jacques Derrida – um dos mais importantes filósofos contemporâneos – e Elisabeth Roudinesco – uma das mais importantes historiadoras da psicanálise na atualidade –, lançado na aurora deste jovem século 21.

Nascido em uma família judia argelina, em 1930, Jacques Derrida foi para a França em 1959, começando a chamar a atenção para o seu trabalho em 1965, quando publica duas resenhas sobre livros acerca da história e da natureza da escrita, no jornal parisiense Critique. Hoje directeur d’etudes da Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, em Paris, o pensamento do filósofo francês tem tido amplo impacto na vida intelectual de grande número de pensadores por todo o mundo. O fato é que se a abordagem de Derrida no que se refere à tradição do pensamento ocidental tem, fundamentalmente, a preocupação de refletir a dependência dessa tradição à lógica da identidade, o conceito de “différance” (diferença), criado por ele e que marca toda a sua filosofia, repercute de tal forma no terreno filosófico que finda por mantê-lo criativo e inventivo. Com efeito, se com Derrida a “différance” é o protótipo do que é não-conceitualizável, isto deve-se ao fato de que a “diferença” é a própria condição de possibilidade de pensamento.

Elisabeth Roudinesco, por seu lado, entende que na sociedade ocidental, a contemporaneidade – época na qual constatamos o desaparecimento do ideal revolucionário com a derrota do comunismo, este um grande ideal – é marcada por um profundo desejo de normalização. Entretanto, de acordo com a autora, se a loucura, a sexualidade, o suicídio ou a morte são constituivos da própria condição humana, o que se altera é, na verdade, a representação que fazemos dela. E, de fato, se a humanidade não pode curar-se do que ela é, a condição de pensamento dá-se a partir da instauração de diferenças possíveis.

Historiadora e psicanalista, professora na Ecole Pratique des Hautes Etudes, em Paris, e orientadora de teses na Universidade de Paris VII, Elisabeth Roudinesco tem numerosos livros dedicados à historia da Psicanálise. Tendo sido também membro da Ecole Freudienne de Paris de 1969 a 1980 – instituição fundada por Jacques Lacan (1901-1981) em 1964 e dissolvida por ele no ano de 1980 –, Roudinesco publicou, entre outros, a História da Psicanálise na França (Jorge Zahar, 2 vols.), a biografia do psicanalista francês Jacques Lacan: Esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento (Cia. Das Letras), o Dicionário de Psicanálise (Jorge Zahar), em co-autoria com Michel Plon, e atualmente dedica-se a refletir acerca da Psicanálise e suas relações com a contemporaneidade. Desse exercício nasceu Por que a Psicanálise? (Jorge Zahar), e A família em desordem (Jorge Zahar).

Assim é que De que amanhã… Diálogo é um livro importante na medida em que – “correspondendo à definição clássica do gênero em filosofia e nas humanidades, no qual uma troca cuja lógica se constrói ao longo de dois discursos que se cruzam sem jamais se fundirem e se respondem sem verdadeiramente se opor” – Jacques Derrida e Elisabeth Roudinesco unem forças no intuito de refletir acerca da contemporaneidade e, consequentemente, do porvir. Privilegiando nove temas distribuídos em nove capítulos, os autores se debruçam sobre a herança intelectual dos anos 1970, tão depreciada na atualidade, da noção de diferença (sexual, “étnica”, cultural etc.), das transformações da família ocidental. O quarto capítulo é dedicado, então, a uma reflexão sobre a liberdade humana, o quinto sobre os direitos dos animais e os deveres que o homem contrata com eles, o sexto, o sétimo e o oitavo capítulos são dedicados ao espírito da Revolução depois do fracasso do comunismo, à atualidade da pena de morte e à sua necessária abolição, e às formas modernas de anti-semitismo presente e por vir. O nono capítulo é, afinal, dedicado à Psicanálise, referência comum à ambos os autores ao longo desse diálogo.

Com efeito, a importância desse livro reside em que, partícipes do que se constituiu como o século 20, e hoje o jovem século 21, os autores se debruçam sobre tais temáticas por meio de uma reflexão em que se misturam as abordagens filosófica, histórica, literária, política e psicanalítica e – na medida em que determinada etapa histórica não seja entendida como permanente e que a sociedade humana seja considerada capaz de mudança, o presente não sendo o seu destino final –, ao fazê-lo, nos possibilitam, ao acompanhar tal diálogo reflexivo, voltar atrás no tempo e assim projetar um porvir.